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Cidade de pedra

Heróis da resistência

Nos bairros onde moram eles são exceções. Enquanto os vizinhos vivem em altos edifícios, eles continuam ocupando casas que quase desaparecem em meio aos muitos prédios de Curitiba

Válter Cavalheiro mora há 45 anos numa casa de madeira da Rua Palmeiras, na Água Verde: chácaras dos italianos deram lugar às altas torres |
Válter Cavalheiro mora há 45 anos numa casa de madeira da Rua Palmeiras, na Água Verde: chácaras dos italianos deram lugar às altas torres (Foto: )
Contraste: no centro e nas zonas estruturais, os prédios não têm altura limitada |

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Contraste: no centro e nas zonas estruturais, os prédios não têm altura limitada

Cecília viveu as mudanças do Bigorrilho e lutou para o bairro não mudar de nome |

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Cecília viveu as mudanças do Bigorrilho e lutou para o bairro não mudar de nome

Válter Cavalheiro, 74 anos, mora na Rua Palmeiras, a duas quadras da Avenida República Argentina, em Curitiba. Ali, a Palmeiras se dividiu em duas antes de desembocar na via rápida. A divisão é feita por um prédio, construído bem no meio do caminho. Ele não é o único da via. "Tem edifício por tudo. Sobrou muito pouco dos vizinhos antigos", diz Cavalheiro, que mora na mesma casa de madeira da Palmeiras há 45 anos. O terreno pertencia aos pais da esposa, já falecida. A família era de origem italiana, coisa mais que comum pros lados da Água Verde.Ivonete Pampuch, 62 anos, é vizinha "de frente" de Walter. O pai era descendente de poloneses; a mãe, de italianos. Ivonete nasceu e se criou no lado italiano da família. A parte polaca ficou no Pilarzinho. "A coisa era assim. As famílias construíam as casas umas perto das outras. Eram terrenos grandes. Aqui a quadra to­­da era do pessoal de casa", conta.A situação começou a mudar no fim da década de 70. Os ônibus expressos já cruzavam a cidade e a República Argentina via o comércio se fortalecer. "Foi quando construíram o primeiro prédio aqui da rua. Tem uns 30 anos. Daí pra frente não parou mais", lembra Cavalheiro. A Água Verde deixava de ser o bairro das chácaras da italianada. Cavalheiro e Ivonete resistem à verticalização cada vez maior. Ivonete diz que as imobiliárias já a procuram, "sem apresentar preço decente". Cavalheiro diz que nunca falou de negócios com ninguém, embora parte do terreno do lado, que pertencia ao seu irmão, já esteja vendido. O fenômeno não é exclusividade da Água Verde. Cabral, Juve­vê, Bigorrilho, Batel, Alto da XV e outros bairros, mais antigos e próximos ao Centro, veem a formação de mares de prédios, ilhando as casas em volta. "Isso tem a ver com a maneira como a cidade cresceu. A cada 10 anos é como se Curitiba recebesse toda a população de uma cidade média", diz Ricardo Bindo, diretor de planejamento do Instituto de Pes­quisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). Segundo ele, a lei de zo­­neamento da cidade divide a cidade em áreas de ocupação, com re­­gras específicas para a construção de prédios. Em quase todo o Centro e nas chamadas estruturais, as edificações não têm altura limitada, ao contrário do que ocorre no resto da cidade. As es­­truturais são vias paralelas a uma via central onde circulam os ônibus expressos. Fazem a ligação do Centro às regiões Norte, Sul, Leste e Oeste. É onde avançam os prédios e as casas rareiam. Segundo dados do Ippuc, 170 mil pessoas moram nas vias estruturais.

Ilhada no Bigorrilho

A Padre Anchieta é uma dessas vias. A rua corta o bairro do Bi­­gorrilho, uma das áreas que mais vive o embate do tradicional com o moderno em Curitiba, segundo o historiador Marcelo Sutil. "Ali houve um estranhamento dos moradores antigos, que viram meio assustados o crescimento do bairro, com os vizinhos tradicionais vendendo suas casas e a construção de grandes edifícios", diz Sutil, um dos autores do livro Bigorrilho: a Construção de um Espaço Urbano.

O estranhamento gerou uma reação. O "pessoal dos prédios" quis até mudar o nome do bairro de Bigorrilho para Champagnat. Cecília Agner, 79 anos, não concordou. Promoveu baile, manifestação e botou jornal na rua para defender o nome tradicional da localidade. Deu certo. Dá para dizer que poucos moradores do Bigor­­rilho vivenciaram as mu­­danças do bairro com a intensidade de Cecília.

"Quando eu era criança, falavam que o Bigorrilho era muito distante do centro e difícil de chegar. E era mesmo. Quando a gente ia ao baile tinha de levar um par de sapatos reserva. Os sapatos que a gente usava para chegar à festa ficavam cobertos de barro. Aí não tinha como dançar."

Hoje não tem mais barro na esquina da Padre Anchieta com a Francisco Rocha. Tem é muito asfalto. As duas ruas foram aterradas entre as décadas de 70 e 80. Ficaram em média 6 metros mais altas. A casa de Cecília ficou abaixo do nível da rua. Os vizinhos são todos grandes prédios com mais de dez andares. "Fiquei espremida e encolhida", diz ela.

Além da casa em que mora com um filho, o terreno de Ce­­cília abriga uma banca de jornais e uma confeitaria. Hoje a banca está alugada, mas Cecília tocou o negócio durante muito tempo. É daí que conhece "quase todo mundo". "Sou antiga, sou da as­­sociação de moradores. Aí conhecia o pessoal mais velho. O pessoal dos prédios eu conheço menos. Gosto de conversar e sempre falava com os que vi­­nham na banca. Mas a maioria chega e sai de carro, com o vidro escuro e fechado. Nem a cara você vê", diz ela, uma autoridade ilhada no Bigorrilho.

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