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Expedição Coração do Paraná

Ilha Grande: o último salto de Guaíra

Há quase 25 anos a cidade de Guaíra, localizada no extremo Oeste do Paraná, perdia a paisagem das Sete Quedas. O complexo de cachoeiras no Rio Paraná era a principal atração da região antes de ser lentamente submersa pelo reservatório da hidrelétrica de Itaipu. Depois de um longo período de decadência econômica, Guaíra reencontrou sua vocação turística na exploração de outros atrativos naturais. O mais importante deles é o Parque Nacional de Ilha Grande, um labirinto de canais, ilhas e lagoas formadas em meio ao Rio Paraná. Com mais de 3,5 quilômetros de largura, o rio margeia a cidade atraindo pescadores de todo o Brasil e exterior, que buscam dourados, pacus, jaús e outros peixes de grande porte. Sobre ele está a Ponte Ayrton Senna, a maior ponte fluvial do país. A diversidade de fauna e flora na região é tanta que ela costuma ser chamada de Pantanal paranaense. Porém a falta de uma política responsável e sustentável sobre o parque está ameaçando todo esse patrimônio, que pode desaparecer e repetir uma história que Guaíra perdeu há muito tempo.

"Guahyrá" é uma palavra que, na antiga escrita espanhola, representa o passado fascinante de uma região datada muito antes de os portugueses chegarem ao local. No século 16, a América do Sul estava dividida pelo famoso Tratado de Tordesilhas, época em que boa parte do Paraná pertencia ao reinado da Espanha. As expedições de reconhecimento iniciaram-se em 1522, quando vários aventureiros espanhóis percorreram a Região Sul do país em busca de metais preciosos. Seguindo as trilhas do lendário Caminho de Peabiru, passaram pela Costa Oeste paranaense figuras históricas como Aleixo Garcia, Cabeza de Vaca e Ruy Malgarejo. Esse último fundou em 1554 a Ciudad Real del Guayrá, na foz do Piquiri com o Rio Paraná. Logo surgiram os primeiros relatos dos viajantes, de um lugar tomado pelos índios Guaranis e "intransponível" por causa das Sete Quedas. Mais tarde, vieram os jesuítas na tentativa de catequizar os quase 200 mil índios da Província do Guayrá. Em 1609, os missionários, que já gozavam da confiança dos índios, ordenaram o fim do trabalho escravo dos Guaranis junto aos espanhóis. Eles também se recusaram a continuar em missões ambulantes, com o propósito de formar comunidades sólidas e duráveis. Nascia assim, na Ciudad Real, a primeira redução jesuítica do Paraná.

Infelizmente, desse passado praticamente nada sobrou. Em 1628, uma grande bandeira paulista, comandada por Antônio Raposo Tavares, adentrou em território paranaense destruindo todas as reduções encontradas pelo caminho. Da sua saga, consta a matança de mais de 15 mil índios e a prisão de 60 mil, levados acorrentados a São Paulo, onde foram vendidos como mão-de-obra escrava. Atualmente, a área da antiga Ciudad Real pertence ao município de Terra Roxa, desmembrado da vizinha Guaíra. Subindo o Rio Paraná até a foz do Piquiri, percebe-se que a floresta virgem praticamente não existe mais. Atrás da mata ciliar, extensas fazendas e campos para pasto terminaram por destruir um pedaço da história do continente. Do outro lado do rio, a Ilha Grande contrasta com sua exuberante natureza, assistindo perigosamente à degradação instalada em sua frente.

Não bastasse o desaparecimento das ruínas, Guaíra ainda sente o fim das Sete Quedas, criminalmente apagadas do mapa com a inundação do Lago de Itaipu, ocorrido na época do regime militar. Alguns moradores da cidade, que viviam em função do turismo das quedas, relatam com tristeza o dia em que o lago foi enchendo e calando aos poucos o som dos memoráveis saltos. Contudo, a submersão das cachoeiras revelou uma face que até então estava ofuscada. Um maravilhoso labirinto de canais, lagoas, praias, além da enorme diversidade de vegetação e animais silvestres que formam o Parque Nacional de Ilha Grande. No trajeto de barco até a Lagoa Saraiva, que fica no interior da ilha, é possível encontrar boa parte dessas características, avistando, em dias de sorte, bugios, capivaras, veados e muitas aves circulando livremente nas redondezas. A Lagoa possui duas tonalidades com temperaturas distintas, proporcionando ao visitante uma bonita paisagem sobre as águas.

A criação do parque teve como principal objetivo a proteção de um ecossistema complexo de extrema importância e fragilidade ambiental. Mas a falta de um plano de manejo, os constantes incêndios e o não-pagamento das indenizações dos ilhéus transformaram a ilha num campo de conflitos. Com a homologação do Parque Nacional em 1997, cerca de 1,3 mil famílias acabaram expulsas da ilha, sem receber a indenização prometida pelo Ibama. Desde então, elas lutam na Justiça pelo pagamento das indenizações, muitas vezes ameaçando invadir as terras desocupadas e até mesmo provocando incêndios criminosos como forma de protesto. O Parque de Ilha Grande tem cerca de 78 mil hectares numa extensão de 120 quilômetros e registrou em 1999 o maior incêndio da sua história, quando 80% da ilha foi consumida pelas chamas. Recentemente, os ilhéus deram um ultimato ao governo federal, que negocia um ressarcimento muito abaixo do valor exigido pelos antigos moradores. "Ou recebemos a indenização ou retomamos nossas terras. Se entrarmos no parque novamente, não sairemos mais", desabafa o ilhéu João Gomes, que mora em condições precárias na periferia de Guaíra.

Diante de tantas perdas importantes e imponentes, o município de Guaíra tem a obrigação de ajudar o Parque Nacional de Ilha Grande a se transformar numa área efetiva de preservação e adequada para a prática do turismo sustentável. A menina dos olhos da cidade não pode continuar à deriva nas mãos da burocracia dos órgãos federais, contaminados por empresas terceirizadas duvidosas. "Criaram o parque sem um plano de manejo. Até hoje a empresa contratada para elaborar o plano não apresentou todo o projeto. Houve até uma ação emitida pela Associação dos Ilhéus da cidade para acabar com o parque, a fim de explorarem a área", conta o prefeito de Guaíra, Fabian Vendruscolo. Apesar de a ilha não pertencer ao município, é do município que a maioria dos visitantes parte para conhecer as belezas rio acima. Potencial imenso, que só se confirmará quando a cidade tirar do passado a lição para não ficar mais uma vez na saudade de seus atrativos naturais.

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