
A lei seca não mudou apenas os hábitos de motoristas. Em 14 municípios do Paraná, para obedecer à nova lei, os padres modificaram hábitos de dois mil anos da Igreja Católica. Eles pertencem à Diocese de São José dos Pinhais, onde o clero foi liberado para usar suco de uva ou vinho sem álcool durante a missa, ao invés do vinho canônico tradicional.
A diocese, que abrange 32 paróquias em 14 municípios e 40 párocos, sugere aos sacerdotes que fazem questão do vinho tradicional que arrumem uma forma de não dirigir após as cerimônias. A igreja não determina uma quantidade específica de vinho a ser consagrado. "Não há necessidade de consagrar quantidade", diz Douglas Marchiori, diácono permanente da Diocese de São José dos Pinhais.
Apesar de a lei seca tentar coibir totalmente o consumo de álcool para motoristas, eventualmente uma pequena quantidade pode ser ingerida sem ultrapassar os valores estabelecidos. "Em princípio, a nova lei não permite a ingestão de bebidas", explica Gabriel Andreuccetti, pesquisador do Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (Cisa). "Os limites foram inseridos para considerar uma pequena margem de erro dos aparelhos."
Contando com a possibilidade de erro, um padre poderia beber cerca de 120 mililitros de vinho sem que seu teor alcoólico infrinja a legislação. "Como pesquisador, não aconselho o consumo de álcool em nenhuma quantidade, até porque existem uma série de fatores que influenciam na quantidade que uma pessoa pode beber, como peso, altura, sexo...", esclarece Andreuccetti.
A prática de consagrar com vinho sem álcool ou suco de uva natural é considerada polêmica (ver box). "O ideal é que ninguém se arrisque", afirma o diácono Douglas Marchiori. "Não há objeções ao vinho sem álcool ou ao suco. Tudo depende da referência com que se olha para a Bíblia. A idéia do vinho se relaciona com um dos primeiros milagres de Jesus, que transformou 500 litros de água em um vinho muito bom. No entanto, o muito bom varia de pessoa para a pessoa. Não gosto de álcool e o meu vinho muito bom seria o sem álcool."
Outro ponto contrário à bebida, segundo a Diocese de São José dos Pinhais, é que a distribuição das duas espécies nos cultos pão (hóstia) e vinho seja feita com vinho não-alcoólico. "Existem pessoas que não podem ingerir uma gota sequer de álcool", lembra dom Ladislau Biernaski, bispo diocesano de São José. "Precisamos lembrar delas."
Tradição
Pela tradição católica, o vinho, nas missas, significa o sangue de Jesus Cristo, que deu sua vida em favor da humanidade. O culto representa o sacrifício do filho de Deus; a hóstia seria o corpo e o vinho, o sangue. "O padre é o presidente da cerimônia", diz Marchiori. "Se outros ministros estiverem no ato religioso, eles também devem beber. Mas o padre é obrigado a beber o sangue de Cristo."
Mesmo com a as mudanças, a diocese se mostra favorável à lei seca. "Ela veio para dar fim ao caos das nossas ruas e estradas", afirma Marchiori. Dom Ladislau lembra que, na Europa, há leis semelhantes. "Mas há exceções para os padres", ressalva. "De qualquer forma, é interessante que se elimine o álcool tanto das missas quanto das festas das comunidades."
Flagrado
Em 11 de julho, um padre não-identificado da região de Ribeirão Preto (SP) foi flagrado no teste do bafômetro. Após rezar uma missa, o padre seguia em direção a outra paróquia, para fazer mais uma celebração, mas foi parado pela Polícia Militar. Durante a cerimônia religiosa, o pároco havia ultrapassado os limites de vinho permitidos pela nova legislação 0,1 miligrama de álcool por litro de ar expelido no bafômetro ou 2 decigramas de álcool por litro de sangue. O padre não recebeu as sanções devidas multa, apreensão da habilitação e detenção porque um Policial Militar o reconheceu e o liberou.
"Um padre tem direitos e deveres", afirma Douglas Marchiori. "O soldado agiu errado nessa situação. Não se deve abrir exceções, as pessoas devem conhecer a lei e respeitá-las. Os padres não estão acima disso."



