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“O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, no final de 2014, denunciou a situação em que trabalhavam os policiais das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) como análoga à escravidão. Como esperar desses trabalhadores respeito aos marcos constitucionais e aos direitos humanos?”, questiona o antropólogo Luiz Eduardo Soares, um dos autores do livro “Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, uma coletânea de textos que será lançada esta semana em São Paulo durante o seminário internacional “Cidades Rebeldes”, que começa nesta terça-feira (9).

Autor de “Elite da Tropa”, o antropólogo ressalta em seu texto que os praças e os não delegados, maioria nas polícias Militar e Civil, respectivamente, “têm sofrido todo tipo de violação a seus direitos como trabalhadores e cidadãos e cada vez mais intensamente demonstram insatisfação”. O comentário, que poderia valer para o Rio ou qualquer outra cidade do país, ecoa com a proposta do livro, a de refletir sobre a violência policial e trazer alternativas para reverter o quadro atual, de violência desmedida.

Coletânea de textos de autores que vão do coronel da PM do Rio Íbis Pereira até a psicanalista Maria Rita Khel, passando pelo movimento independente Mães de Maio e o Núcleo de Estudos da Violência da USP, a publicação, lançada pela Editora Boitempo, tem por objetivo incitar o debate público sobre o tema. Apesar das visões diferentes sobre violência policial, há uma conclusão praticamente unânime dos autores; a da violência como ausência de democracia real.

“O livro tem visões muito diferentes, desde a de quem defende a imediata desmilitarização da polícia até a do coronel Íbis. No caso do Brasil, a polícia é extremamente violenta, especialmente com negros, pobres e moradores da periferia”, diz Ivana Jinkings, diretora editorial da Boitempo e uma das organizadoras do seminário “Cidades Rebeldes”.

Na tentativa de explicar esse histórico de violência, o cientista político e especialista em segurança pública Guaracy Mingardi, ressalta, na apresentação do livro, que “só nas últimas décadas é que as instituições policiais começaram a direcionar seus esforços para atuar como protetores do cidadão e da cidadania”. Mingardi discorre sobre o assunto depois de lembrar uma fala do delegado Hélio Luz, chefe da Polícia Civil carioca no fim da década de 1990, para tentar explicar por que o Brasil tem uma das polícias mais violentas do mundo: “os policiais brasileiros tinham uma visão de capitão do mato, o caçador de escravos do Império”.

“Acredito nessa visão que o Guaracy lembrou, nunca havia pensado nisso, para dizer a verdade. É uma tradição histórica, as polícias existem para manter a ordem, o capital, o regime vigente”, complementa Ilana Jinkings.

Por outro lado, o movimento Mães de Maio, em texto assinado por Débora Maria da Silva e Danilo Dara, lembra vítimas recentes de mortes cometidas por agentes do Estado ao comentar a proposta do livro como “decorrência da resistência popular que tem se manifestado nas ruas nos últimos anos”. “É reflexo da reação popular frente cada operação militar, cada nova chacina, cada novo caso de execução recente, como o de Amarildo, Ricardo ou Cláudia, reação que constitui a real potência emancipatória popular do verdadeiro Junho de 2013”.

Na outra ponta, o coronel Íbis Pereira ressalta que a sociedade, como um todo, é violenta: “A barbárie nacional não se explica apenas pelo esquizofrênico sistema de justiça criminal que adotamos: instituições partidas com atribuições fragmentadas e dissonantes”, diz. “Há muita cólera latente; desafeição silenciosa que se manifesta em crueldade não apenas nas intervenções policiais, mas no trânsito selvagem de ruas, avenidas e rodovias brasileiras, no campo, no interior dos domicílios, nas escolas e nos estádios de futebol”, complementa o oficial da PM.

O livro será comercializado ao preço simbólico de R$ 10 (o e-book custa metade, R$ 5), com o objetivo de democratizar a discussão sobre a violência policial no país.

Seminário ‘Cidades Rebeldes’ começa nesta terça-feira

Além de “Bala perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação”, outras obras da Boitempo serão lançadas e devem pautar as principais mesas do seminário internacional “Cidades Rebeldes”, que acontece entre esta terça e a sexta-feira em São Paulo, no Sesc Pinheiros (Zona Oeste).

O evento terá mais de 40 conferencistas de várias partes do mundo discutindo o presente e o futuro das cidades como palco de disputas sociais, ideológicas e políticas. Outras questões, como os efeitos do neoliberalismo nas metrópoles e o quanto a realização de megaeventos (como a Copa do Mundo e as Olimpíadas) afeta a sociedade e excluí parte dela, também devem ser discutidas.

Segundo Ivana Jinkings, as metrópoles deveriam ser espaços mais igualitários e organizados. Para ela, a urbanização tem crescido ao redor do mundo, mas de forma irracional.

“A gente quer discutir a cidade como direito à vida. Nos importa a construção de um espaço urbano mais igualitário e organizado. O modelo irracional de cidade se espalha mundo afora, com concentração maior de riqueza, violência policial, preconceito, intolerância e xenofobia, essa principalmente na Europa. E acredito que essa não é uma discussão local, brasileira, mas global. É por isso que trazemos muitas pessoas de fora para participar do seminário, elas acrescentando ao debate com suas experiências”, diz.

Entre os conferencistas do seminário estão os britânicos David Harvey (professor emérito da City University of New York e autor do livro “Paris: capital da modernidade”) e Stephen Graham (professor de Cidades e Sociedades na Escola de Arquitetura da Universidade de Newcastle, na Inglaterra, e autor do livro “Cities Under Siege”), o italiano Domenico Losurdo (professor de História da Filosofia na Universidade de Urbino, na Itália, e autor de “A luta de classes: uma história política e filosófica”),o canadense Moishe Postone (professor de História na Universidade de Chicago e autor de “Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx”) e os brasileiros André Singer, (jornalista e cientista político, ex-porta voz da Presidência da República no governo Lula) Christian Dunker (psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e autor de “Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros”), Marcio Pochmann (economista e ex-secretário municipal do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade de São Paulo) e Maria Rita Khel, entre outros.

Ivana Jinkings diz que o evento tem por objetivo “estimular o pensamento crítico, fazer pensar”. Ela acrescenta que debates similares devem ser promovidos futuramente em outras partes do país.

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