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 | Ivo Vicentin
| Foto: Ivo Vicentin

Uma criança se joga no chão do supermercado, grita, esperneia e exige que os pais, inertes, comprem o desejado produto. Pouco comum há algumas décadas, a cena é quase rotineira nos dias atuais. Há quem jogue a responsabilidade pela falta de limites dos filhos na figura do pai, que perdeu o poder nas novas configurações familiares. Outros garantem que o ingresso da mãe no mercado de trabalho gerou uma culpa que se tenta corrigir com a permissividade.

No livro Déspotas Mirins: o poder nas novas famílias (Zagodoni Editora, 2012, 144 páginas, R$ 34), a psicanalista e pesquisadora Marcia Neder afirma que a criança perdeu o limite quando o responsável deixou de se posicionar como o adulto da relação. "Antes, o pai queria ser obedecido e respeitado. Hoje, o adulto quer ser amado e aprovado", diz. Autora de outros dois livros na área da educação, Marcia concedeu entrevista à Gazeta do Povo:

Mudou muito a educação das crianças desde seu primeiro livro, na década de 90?

No [livro] Déspotas Mirins, pude trabalhar educação voltada para outra instituição que se encarrega dela, que é a família. Nos primeiros, eu foquei mais a escola, e agora pude falar da família e das novas configurações familiares. No século 21, embora permaneça o que a gente chama de tradicional, ou patriarcal, vemos muitas outras configurações familiares, inclusive, regulamentadas pela Justiça. As famílias homoafetivas, monoparentais...

Essas novas configurações influenciam no comportamento despótico das crianças?

O que eu digo é que, ao longo do século 20, ocorreu um fenômeno chamado despatriarcalização da família. Os meus colegas, toda a mídia e a nossa cultura resolveram dizer que o século 20 acabou com o poder do pai. Ok, acredito. Você vai ler as matérias e todas são unânimes: a criança está sem limite pelo enfraquecimento da função paterna. É chover no molhado. E aí? Aí as pessoas dizem: porque quem tem poder é a mãe. As mulheres têm o poder e, como elas começaram a trabalhar fora, ficam culpadas.

Quando chegam em casa, concedem tudo, e está criada a criança sem limites. Eu discordo. Eu digo que nem pai, nem mãe. O pai perdeu o poder, mas a mãe não ganhou o poder. Quem ganhou o poder foi a criança. Nossa cultura deslocou o poder, o que culminou no que eu chamo de déspota mirim. Uma cultura centrada na criança.

É o que você chama de "pedocracia"?

Exatamente. Não existe em português, eu inventei.

Seria como um governo da criança?

E dado por nós. Mas tem outra coisa determinante, por isso digo "o feminino e o poder nas novas famílias". Até o século 17, na Europa, as crianças eram amamentadas pelas amas de leite e só voltavam para a casa dos pais com cinco ou sete anos. A partir dos séculos 18 e 19 começa uma campanha para a mãe amamentar. A obrigação da mãe começou a se estender cada vez mais, ao longo de dois séculos, até que hoje ela precisa saber nutricionismo, girar a vida em torno dos horários do filho, ser responsável pela saúde mental. Com isso, você cria uma escrava. Cria um ser adulto disponível 24 horas por dia para uma criança.

Como lidar com isso? Como colocar limite em uma criança? É a partir da mãe?

A partir de quem educa a criança. Tem famílias em que os pais assumem todos os cuidados. Educação não é adaptar a criança à sociedade, não é reprimir, não é botar limite. É incluí-la em uma cultura que está pronta, uma cultura de adultos. É sensibilizar a criança, seduzir, como digo no meu primeiro livro.

Existe limite para o limite? Os pais não correm o risco de serem muito repressivos?

Esse risco a gente corre pouco. Quando eu falo em seduzir, não é no sentido tradicional, é introduzir a criança nessa cultura de adultos na qual ela chega diferente. Sedução implica nessa diferença entre um adulto e uma criança.

Na prática, como o adulto responsável pela criança faz isso?

Sendo adulto. Tanto faz ser homem ou mulher. Um é adulto, o outro é uma criança.

Isso se perdeu?

Sim! O adulto está interessado em ser coleguinha, eu sou amigo, eu sou criança igual a ele, eu sou jovem igual a ele. Não sou mais o adulto da relação.

Os pais têm medo de perder essa estima?

O amor. Os pais hoje buscam ser amados pelo filho. Antes, o pai queria ser obedecido e respeitado. Hoje, o adulto quer ser amado e aprovado.

Por que essa diferença no mundo atual?

Por todas essas mudanças na família, nós passamos a cultuar a criança como se fosse um deus. Temos o culto à infância. A criança é nosso ídolo. Cultuamos tanto a criança que legislamos cada vez mais em tirar poder dos adultos. Não pode bater, não pode dar um tapinha. Não estou dizendo... Eu criei dois filhos [uma filha de 30 e um filho de 26] e nunca encostei a mão.

E eles não são déspotas?

Na hora que tentam ser, principalmente o menino, o caçula, quando tenta pegar a coroa, eu: "escuta aqui, eu sou a mãe, você é o filho..." (risos). Desde que nasceu, não adianta medir força, porque eu sou a mãe.

É medir força mesmo, então? A gente vê aquela cena de birra no supermercado, a criança se joga no chão, e os pais não sabem o que fazer. Como agir?

É desesperador! Eu passei por isso. Meu livro é resultado de muito estudo e muita prática (risos). Tenho uma máxima ótima: não há criança no mundo que veja firmeza nos adultos que estão em volta e vá romper essa barreira. Criança não dá show sem plateia. Tanto é que você fala: supermercado, hora que a família está visitando, é aí que vem o show. Se você está sozinho com a criança, ela olha feio, você diz "não faz", ela vai para cima de você, você segura mão, pé, enfrenta fisicamente e acabou. E você faz uma vez, outra vez, e começa a estabelecer desde cedo as bases de que "quem manda sou eu".

Mas você não cria medo?

Respeito. E se criar medo também está bom, não tem problema. O medo é muito bem vindo, te protege. É fundamental.

O pai não precisa ter medo de criar trauma se disser não?

Vai criar trauma se não disser não. Tenho visto muitos jovens tristes, insatisfeitos, deprimidos, porque olham para trás e falam "O que realizei? Nada. Eu poderia fazer tudo, mas meu pai e minha mãe não me botaram limites". Mãe tem que ser bruxa, eu tenho que ensinar o que você não gosta de fazer.

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