Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Por que vale a pena?

The Artist Is Present

Para os visitantes da performance, Marina Abramović lança um olhar fixo, que gera reações surpreendentes | Divulgação
Para os visitantes da performance, Marina Abramović lança um olhar fixo, que gera reações surpreendentes (Foto: Divulgação)

Marina Abramović oferece um olhar. Somente um olhar, retilíneo, desacompanhado de palavras, por um período incerto de tempo. Um gesto que, ao contrário do que muitos imaginam, gera reações reveladoras. Mesmo quando o contato dura poucos segundos, pessoas choram, choram verdadeiramente, como quem se sente, depois de uma vida inteira, compreendido – neste grupo está este que vos fala.

As pessoas afetadas por esse olhar não foram somente aquelas que se sentaram em frente à artista iugoslava, na sua exposição de retrospectiva, que ocupou os seis andares do Museu de Arte Moderna (MoMa), em Nova York, em março, abril e maio do ano passado. Aquelas que assistem ao documentário sobre o evento também reagem de maneira semelhante, no que diz respeito à emoção.

O documentário Marina Abramović – The Artist Is Present, dirigido por Matthew Akers e Jeff Dupre, leva a exposição da artista no MoMa aos quatro cantos do mundo. Além de trazer informações sobre o evento, o trabalho audiovisual explora a pergunta-chave da performance mais surpreendente entre todas as apresentadas, intitulada The Artist Is Present: "por que as pessoas choram no contato com o olhar da artista?".

Antes de traçar possíveis respostas, é importante detalhar a performance em questão. Numa sala, há duas cadeiras, uma de frente para a outra, com uma mesa entre elas, tudo de madeira. Em uma das cadeiras, Marina Abramović fica por cerca de sete horas diárias, sempre de vestido longo monocromático, cabelo trançado e rosto lavado. Na outra, e de forma rotativa, sentam-se os visitantes, pelo tempo que quiserem. Para cada um deles, ela dedica um olhar fixo.

Parece insignificante, mas não é. O olhar de Marina Abramović é o caminho para o clímax emotivo observado entre os participantes. A artista mergulha pela retina e, não raro, alcança o cerne da dor de quem está à sua frente. Lá, ela parece depositar uma compaixão materna, isenta de qualquer julgamento, que desarma automaticamente todos os tipos de resistências. Sentindo-se, então, acalentadas, as pessoas expõem, por meio das lágrimas, todas as suas fraquezas, como se estivessem em uma espécie de terapia silenciosa.

Por meio do retrato feito pelo documentário, é possível sublinhar algumas das possíveis fontes de dor dos visitantes. Uma delas é a solidão, uma consequência da rotina, das exigências e das mediações tecnológicas impostas pela sociedade. Ao longo das últimas décadas, as pessoas deixaram de se olhar nos olhos e se isolaram nos próprios quartos, as novas bolhas do individualismo, a ponto de viverem à beira de um colapso. Vivem como que à deriva, compartilhando com os outros quase que somente um sentimento de descrença.

Esse perfil da sociedade que Marina Abramović revela por meio de The Artist Is Present já foi tratado por vários sociólogos. Para citar apenas um deles, e talvez o mais relevante de todos, o polonês Zygmunt Bauman argumenta que as pessoas vivem a era da modernidade líquida, caracterizada pelo fim das utopias. Elas identificam os problemas existentes no mundo, mas não acreditam na possibilidade de extirpá-los, por sentirem que seria uma batalha solitária e, portanto, fadada ao fracasso.

Um desdobramento desse sentimento de solidão pode ser também uma outra fonte de dor para os participantes da performance. Além de não conseguirem mudar o mundo à própria volta, essas pessoas são confrontadas a todo o momento pela busca ao amor. Ao mesmo tempo em que são estimuladas pelo cinema, pelas novelas, pela publicidade e pela literatura a viver romances genuínos, elas se mutilam com as frustrações que colhem nas inúmeras tentativas a que se submetem. Assim, mesmo sendo cansativamente explorado pelo comércio, o amor se mostra praticamente inalcançável.

A passagem do documentário que revela essas frustrações afetivas é quando o alemão Ulay, ex-companheiro de Marina Abramović, comparece à exposição no MoMa. No momento em que ele se senta na cadeira vazia, a artista se emociona e, quebrando o protocolo, estende-lhe as mãos, que são aceitas prontamente. O gesto não é de reconciliação, mas, sim, de consideração, uma vez que, apesar de terem vivido intensamente 12 anos juntos, concebendo e atuando em diversas performances, eles também são vítimas dessa era do fim das utopias. É o momento também em que a iugoslava mostra as próprias feridas.

As pessoas que testemunharam o gesto ao vivo, manifestaram a emoção por meio de palmas respeitosas. Já aquelas que assistem ao documentário, reagem com as lágrimas, porque, graças às ferramentas cinematográficas que enfatizam os picos de clímax, como os enquadramentos em primeiro ou primeiríssimo plano, identificam-se com as dores de Marina Abromović e de Ulay. A estória do relacionamento do ex-casal soa como um balde de água fria que reforça a desesperança no amor e na efemeridade do eterno. É como se todos estivessem condenados a essa realidade.

Com toda essa carga emotiva, Marina Abramović se supera em The Artist Is Present. Além de usar o próprio corpo como núcleo da performance, ela se mostra frágil em alguns momentos, da mesma forma como as pessoas que sentam na cadeira à sua frente – em um trecho do documentário, por exemplo, ela revela que sentiu muita dor vinda do público. A relação entre os olhares traz a tona sentimentos que são muitas vezes escondidos por máscaras sociais, conforme já teorizaram tantos estudiosos do simulacro, da mimese e da imagem. Em outras palavras, a artista desperta uma espécie de vulcão adormecido, que, por meio das lágrimas, lembra-nos que somos humanos e não máquinas. Ainda bem.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.