... Márcio, de José e de Eunice
Há um aviso expresso na porta do casebre em que vive Márcio Braz da Silva, 37 anos pedreiro que há duas semanas trocou a construção civil por um carrinho de papel. "Favor tirar os sapatos." Antes de subir os degraus para entrar pela única porta da moradia de 20 metros quadrados, o visitante tem de vencer um terreiro alagado e mirar bem onde pisa. Dentro da casa não é diferente. Ali vivem cinco pessoas e é preciso desviar de colchões, fogão, calçados e bicicleta. "Não ligue a bagunça", diz, à brasileira.
Márcio paga R$ 350 por mês pela ocupação até chegar a R$ 7 mil, quando o antigo proprietário vai lhe passar o que pode vir a ser um título de propriedade. Até lá, vai ter de colher muito papel e pedir a Deus que a casa balance, mas não caia. Corre perigo. Mas como é de praxe nas favelas, dá-se um jeito. Um banner com o rosto da atriz Mira Sorvino faz as vezes de piso no minúsculo banheiro. E há um tanto de terreno para qualquer eventualidade: caiu aqui, ergue-se outra peça ali.
A prática é comum e vai criando labirintos entre uma casa e outra. Foi assim que o pedreiro José Batista Pinto, 54 anos, vizinho de Márcio, fez sua mansão para os padrões pantaneiros. Ele compra madeira velha e freqüenta aterros em busca de restos de pisos azulejados. Montou um mosaico todo de cascalho numa casa de sete peças com banheiro de verdade mas canalizado para o banhadão que fica em frente de casas. "Somos pobres e limpinhos", repete, com seriedade, a frase que costuma virar piada na boca da classe média. Não é mentira. Como se dizia, a casa em que José vive com Sueli, 48, é "um brinco."
Mas não é regra assim como as outras favelas, há de tudo no Pantanal. Há quem crie porcos no quintal, quem faça aterro com lixo para se livrar do desconforto do banhado, quem tenha uma pequena arca de Noé. Numa das invasões dá para contar sete cabeças de gado, galos robustos e uma família de agregados que cuida das casas para o proprietário: há um mercado da informalidade que também escapa às estatísticas, como prova a profusão de placas, com layout de imobiliária estabelecida, anunciando "vende-se."
Embora apenas 10% dos pantaneiros vivam da catação do papel, a falta de estrutura para a reciclagem é um problema a mais na região além das águas, o lixo invade as casas. Eunice Alves da Silva, 38 anos, sabe bem disso. Ela mora na frente de uma grande vala. Para se proteger da erosão, faz um aterro com o próprio lixo que não recicla. Como tem problemas demais, faz graça. "Você quer que eu conte uma história triste ou alegre?", brinca a mãe de Nilton, 15, Jenifer, 12, Wesley, 10 e Mateus, 4. Nem é preciso. É como se vida da periferia estivesse encapsulada nos poucos metros quadrados em que Eunice cria sua família.
... Eledir
Das cinco da tarde às oito da noite tem fila na frente da casa da carrinheira Eledir Rodrigues, 40 anos, moradora da Sociedade Barracão a favela pocket de Curitiba, onde moram 30 famílias, na divisa do Uberaba com o Boqueirão. Depois de um incêndio, em fevereiro deste ano, a casa dela foi a única a não ser atingida. Era o que faltava para a ocupação 100% carrinheira protagonista de uma disputa judicial com uma antiga fábrica da região entrasse no pior de seus dias. Nessa hora, Eledir não podia deixar de colaborar com o melhor de seus bens: o chuveiro e o sanitário.
Especialistas consultados pela reportagem não pestanejam antes de apontar a Barracão como a de situação mais precária. Numa lista da qual fazem parte a Vila Savana, Vila Audi, União e Vitória Pedro Machado, a pequenina favela se destaca pela particularidade. Antes, era um aglomerado de 30 casinhas, umas sobre as outras, dentro de um pavilhão, numa área residencial. Tudo indicava que a sociedade ia se firmar como cooperativa e mudar a história dos carrinheiros da cidade uma população de 10 mil pessoas exploradas por atravessadores do mercado de recicláveis.
Mas foi fogo sobre terra. Ivan Vanderley Vaz, 33 anos, dono daquela que outrora foi a casa mais original do local toda feita com material recolhido no lixo hoje mora numa lona, espremido e, como todo o resto, habitual usuário da fila do banheiro de Enedir. Ele leva jeito para o ofício. Chega a construir uma casa em um dia enquanto a sua não vem. Mas como a maioria do povo da sociedade, Ivan não está de prosa. Desde que o Barracão virou a favela mais falada da imprensa de Curitiba uma espécie de símbolo da resistência dos sem-teto já desabou o teto da fábrica e houve incêndio. "A gente está vivendo cada vez pior", diz uma das representantes das 18 famílias que hoje moram, literalmente, no meio da rua.
...Terezinha e de Teresa
Há quatro anos, Terezinha Élia Costa chegou quase morta na casa onde mora na ocupação Vitória Pedro Machado, no Caiuá uma área criada há quatro anos e onde moram 176 famílias. "Volta e meia vinha alguém ver se eu tinha morrido. Acho que era para ficar com o terreno", diverte-se. Não só está vivinha da silva como se tornou uma espécie de mãe-de-todos na vila.
Ela cuida de crianças e se acha que a casa vai cair por causa de uma chuva, manda todo mundo para debaixo da mesa. Até a filha, quando estava grávida, já foi para o abrigo anti-aéreo. Terezinha não morreu e a casa não caiu. Todo mundo adora essas histórias, entra para escutar e põe a perigo o piso feito com madeira devorada pelo cupim. Ela lamenta e não se fiúza em sonhos. "Tenho 48 anos, mas pareço ter mais. Nunca na minha vida tive uma casa de verdade", avisa. "O banheiro? O banheiro é lá fora. Uma casinha."
A 50 passos dali, a casa de Teresa Patek, 64 anos, é ainda pior. "Vim de Cândido de Abreu e já morei em casa de verdade. Essa foi feita cuspida. Chacoalha. Eu tenho medo." E saudade de ter banheiro de verdade. O mesmo vale para todo o povo de Vitória. Tem até casa de alvenaria na ocupação uma das mais novas da capital mas não falta a marca registrada: aquele filete de água escoando pelas ruas, avisando que as fossas já estão até o gargalo. É a gota dágua.



