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cursos de medicina
Brasil tem 390 escolas médicas, das quais 66% são privadas.| Foto: FUNDEC

O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma na sexta-feira (24), em plenário virtual, o julgamento simultâneo de duas ações com objetivos opostos sobre a abertura de novos cursos de Medicina no Brasil. Há uma disputa envolvendo questões como a preocupação com a qualidade da formação médica e a autonomia de instituições de ensino na criação e ampliação de cursos.

De um lado, a Associação Nacional das Universidades Particulares (ANUP), por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 81, defende a exigência do chamamento público para a abertura de novos cursos, enquanto o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB), por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7187, busca derrubar essa obrigatoriedade.

A ANUP, que tem entre seus associados grandes conglomerados de educação como a Afya, a Cogna e a YDUQS, quer que o art. 3º da Lei nº 12.871/2013, que instituiu o programa Mais Médicos, continue valendo com a interpretação de que o chamamento público é obrigatório para abrir novos cursos. O Conselho Federal de Medicina (CFM) já se manifestou a favor desse mesmo entendimento. Eles argumentam a necessidade de garantir qualidade na formação e uma distribuição mais equitativa de médicos pelo país, como preconiza o Mais Médicos.

Em oposição, o CRUB, formado por reitores de diversas instituições tradicionais do país, defende que a exigência de chamamento público viola princípios constitucionais, como a isonomia e a autonomia universitária, além de prejudicar a livre concorrência. Para o CRUB, a exigência de chamamento público pode inclusive ser prejudicial para a qualidade dos cursos, já que, na visão da entidade, as regras dos editais do Mais Médicos tendem a favorecer os grandes conglomerados empresariais que, muitas vezes, priorizam lucro sobre qualidade acadêmica.

A julgar pelo que já sinalizaram os ministros, é quase certo que o STF reconhecerá a constitucionalidade do dispositivo, atendendo ao pedido da ANUP e frustrando o CRUB. Há mais dúvidas, contudo, sobre o que vai ocorrer com os cursos que já obtiveram liminar judicial favorável para abertura mas ainda não foram autorizados pelo Ministério da Educação (MEC).

Em fevereiro de 2024, após um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes, o julgamento foi suspenso pela terceira vez desde que começou, em agosto de 2023. Em concreto, os ministros analisam se devem referendar uma liminar do ministro Gilmar Mendes que estabeleceu que a abertura de novos cursos de medicina só pode ocorrer com chamamento público, seguindo o artigo 3º da Lei do Mais Médicos.

Para Gilmar, embora o dispositivo deva continuar sendo seguido, não se deve interromper o processo de autorização daqueles cursos que já passaram pela análise de documentos do MEC após receberem decisões judiciais favoráveis. Essa é a regra que vale no momento em todo o país.

Nos seis votos já registrados em sessões anteriores, dois ministros acompanharam inteiramente o relator: Luiz Fux e Dias Toffoli. Rosa Weber e Edson Fachin apresentaram divergências parciais em relação à liminar: para eles, até mesmo cursos que já passaram pela análise de documentos devem ter a tramitação de sua aprovação interrompida.

André Mendonça também defendeu a suspensão de todos os processos, mas, em vez de votar pela constitucionalidade ou não do artigo 3º da Lei do Mais Médicos, sustentou que a política pública precisa ser redefinida pelo governo por meio da criação um grupo de trabalho.

Ainda restam votos de seis ministros para a conclusão do julgamento. Os magistrados têm até 4 de junho para depositar seus votos na plataforma do plenário virtual.

Impasse cria batalha de portarias do MEC contra decisões judiciais

A Lei do Mais Médicos foi sancionada em 2013 pelo governo Dilma com o objetivo de priorizar a abertura de vagas de cursos de medicina em regiões com menor concentração de médicos, buscando levar profissionais para áreas carentes do interior do Brasil. Com a lei, o número de calouros em cursos de medicina explodiu, mas aumentaram as críticas em relação à qualidade de algumas faculdades, especialmente as privadas.

Com isso, o governo Michel Temer decidiu, em 2018, interromper os chamamentos públicos e proibir novos cursos de medicina no país por cinco anos. Ao longo desse período, contudo, muitas faculdades obtiveram liminares judiciais para criar ou ampliar vagas, argumentando que o governo estava cerceando a iniciativa privada. Essas liminares permitiram a criação de outras milhares de vagas de medicina pelo Brasil, inclusive em locais onde não havia especial necessidade de médicos.

Em junho de 2022, a Anup entrou com a ADC 81 no STF justamente para evitar a abertura de vagas por meio de liminares. Com o fim da moratória determinada por Temer, em abril do ano passado, o MEC do governo Lula publicou um edital em outubro com as regras para um novo chamamento público. O documento prevê que o resultado desse chamamento com a lista de instituições aprovadas sairá em março de 2025.

Porém, por causa da indefinição sobre a constitucionalidade do artigo 3º da Lei do Mais Médicos, as liminares favoráveis à abertura de instituições mesmo sem chamamento público continuam sendo obtidas. O MEC tem travado uma batalha contra essas decisões judiciais. Algumas faculdades promovem vestibulares e até iniciam as aulas sem a conclusão do processo administrativo no MEC.

Um caso emblemático dessa novela judicial ocorreu nas últimas semanas. Em março, o MEC notificou seis instituições de ensino superior, entre elas o Centro Universitário Mauá (Uni Mauá), de Brasília, por oferecerem cursos de Medicina sem autorização oficial, baseando-se em decisões judiciais provisórias. "As instituições que realizaram vestibular por meio de decisão judicial para o curso de medicina sem o ato de autorização do MEC devem abster-se de iniciar a oferta efetivada ou suspender a oferta imediatamente, se já tiver sido iniciada", afirmou o ministério.

As universidades alegam ter cumprido todos os requisitos legais. Algumas, como a Unifacens e a própria Uni Mauá, dizem que inclusive receberam nota máxima na avaliação do MEC, e recorreram à Justiça por causa da demora da pasta em publicar as portarias de autorização. O MEC, por sua vez, insiste em que a abertura dos cursos é ilegal, já que, além de não ter ocorrido chamamento público, como a Lei do Mais Médicos exige, a pasta não autorizou o funcionamento dessas instituições.

A Uni Mauá chegou a iniciar as aulas do curso de Medicina neste ano sob proteção judicial. No dia 8 de maio, o MEC endureceu as medidas contra a universidade, ordenando, por meio de uma portaria, a suspensão imediata da oferta de vagas no curso, e notificando alunos e o público sobre a situação. Nesta terça (21), a Justiça derrubou a portaria do MEC e autorizou a matrícula de alunos no curso de medicina.

Mercado da judicialização lucra com impasse; MEC é criticado por entidade de reitores

A Uni Mauá é só uma das centenas de faculdades que decidiram, nos últimos anos, usar a via judicial para abrir cursos de medicina. A tendência de judicialização é tão grande que gerou um mercado paralelo, com escritórios de advocacia e empresas de consultoria oferecendo seus serviços para facilitar a tramitação dos pedidos judiciais e dos processos administrativos para a abertura de cursos de medicina.

Em meio a essa onda, no dia 9 de maio, a Advocacia-Geral da União (AGU) entrou com uma petição no STF solicitando a suspensão de todas as liminares que permitiram a criação de cursos de medicina sem a autorização do ministério. Por causa dessas liminares, há na mesa do MEC mais de 300 processos pendentes de análise sobre abertura de cursos, que envolvem a possibilidade de abertura de mais de 60 mil vagas.

Em dezembro de 2023, como resposta às decisões judiciais, o MEC publicou uma portaria impondo critérios para a análise dos processos pendentes, como a verificação da relevância social da oferta e a avaliação da existência de equipamentos públicos adequados nas redes de saúde do SUS dos municípios onde o curso de medicina está sendo criado.

De acordo com dados divulgados pelo CFM na última segunda-feira (20), quase 80% dos 250 municípios brasileiros que sediam escolas de medicina apresentam déficits em infraestrutura essencial. Os problemas afetam 196 cidades que abrigam 288 escolas médicas, representando 71% das vagas de medicina no país. Para a entidade, isso mostra a necessidade da adoção de critérios mais rigorosos de qualidade para a abertura de novas escolas e vagas.

O Brasil vive uma explosão no mercado dos cursos de medicina. Em 2023, havia 390 escolas médicas no Brasil, quase o triplo do que em 2004, quando havia 136. Das 43,5 mil vagas em escolas médicas – também o triplo do número de 20 anos atrás –, 66% estão em escolas privadas, que tiveram um crescimento especialmente rápido: nos últimos dez anos, foram criadas 5.144 vagas em escolas públicas e 16.629 vagas em escolas privadas. Em 2014, 69% das vagas eram de instituições particulares; em 2023, a parcela subiu para 74%.

Para o CFM e a ANUP, é necessário interromper as múltiplas decisões judiciais no Brasil que têm permitido a abertura de cursos de medicina sem chamamento público. As entidades alegam que as liminares têm permitido a criação de cursos com baixo rigor, comprometendo a qualidade da formação dos médicos brasileiros.

O CRUB, por sua vez, embora também reprove a onda de judicialização, enxerga a obrigatoriedade de chamamento público como a principal origem desse mal, e alega que essa exigência favorece grandes conglomerados educacionais. Para o CRUB, os critérios econômicos dos editais, que priorizam fluxos de caixa elevados, prejudicam especialmente instituições tradicionais sem fins lucrativos e comunitárias, como a PUC, a Unisinos e Universidade Presbiteriana Mackenzie.

O CRUB não critica tanto o Mais Médicos do ponto de vista conceitual, mas especialmente a sua aplicação. A entidade reclama, por exemplo, da falta de transparência e da subjetividade nas escolhas dos municípios para os novos cursos, que frequentemente beneficiam áreas mais ricas e urbanas, em detrimento das regiões mais carentes, o que contradiz os objetivos de uma distribuição equitativa de médicos pelo país. Essa abordagem, segundo o CRUB, também parece favorecer a criação de monopólios regionais por parte dos grandes grupos de educação.

Recentemente, a entidade dirigiu uma crítica ao edital de outubro de 2023 do MEC que estabeleceu as regras para a abertura de novos cursos de medicina no país. "O problema é que falta transparência, inclusive nos ditos editais. Por exemplo, não se sabe por qual motivo o Estado do Acre não teve a disponibilização em seu território de um curso sequer no edital de chamamento público, principalmente quando 13 foram reservados ao Estado de São Paulo (maior epicentro de concentração médica nacional)", afirmou Dyogo Patriota, assessor jurídico do CRUB, em texto publicado em janeiro de 2024 no site da entidade.

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