"Ouvintes alemães! O gueto de Varsóvia, onde foram empilhados 500 mil judeus em pouco mais de 20 ruas, não passa de um buraco de fome, peste e morte que exala cheiro de cadáver. 75 mil pessoas morreram lá no ano passado. Vocês sabiam disso? E o que acham? Não significa nada?" O questionamento, feito em 1942 pelo escritor alemão Thomas Mann, é um dos mais fortes indícios de que praticamente todo o mundo sabia o que estava acontecendo na Europa, mas parece que grande parte se calou para o que ouviu ou enxergou. Mann estava refugiado nos Estados Unidos porque tinha sido expatriado e aceitou o convite da BBC para falar na rádio sobre os horrores do Holocausto. Assim como as declarações dele, que chegaram a diversos países, no Brasil o jornal O Estado de S. Paulo já publicava notas sobre o movimento antissemita. "O jornal informava sobre os judeus presos, que eram levados para campos de concentração, eram humilhados e assassinados. Não se falava em extermínio, mas os brasileiros sabiam o que estava acontecendo", afirma a historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro. Em entrevista à Gazeta do Povo, a professora, autora de livros como O antissemitismo nas Américas e Cidadão do mundo (que será lançado em breve pela editora Perspectiva), explica como os outros países em especial o Brasil contribuíram com o Holocausto e as medidas que tomararam para não refugiar os judeus perseguidos. Ela esteve em Curitiba na semana passada, e participou da II Jornada Interdisciplinar sobre o Ensino da História do Holocausto, organizada pela instituição judaica Bnai Brith.
O Holocausto já foi tão trabalhado em diversos filmes e virou tema de tantos livros... O assunto ainda não foi esgotado?
Só agora o Holocausto está começando a ser compreendido. Muita coisa se escreveu, muitos filmes aconteceram, alguns, aliás, com uma repercussão muito grande como A lista de Schindler e A vida é bela. Mas acredito que uma parte da história muitas vezes é omitida pelos países envolvidos com a Alemanha nazista. Foram países colaboracionistas na época e que, hoje, não têm interesse em divulgar este "apoio". Até alguns anos atrás, muitos arquivos com documentos que comprovam o que estou dizendo estavam fechados, eram literalmente censurados. A própria documentação da Alemanha nazista só recentemente começou a ser digitalizada e liberada.
Todo o acervo está liberado?
Infelizmente não. Há um receio de que uma responsabilidade seja atribuída àqueles que, durante o período do Holocausto (de 1933 a 1945), agiriam como se nada estivesse acontecendo. O descaso também perpetuou o terror e as ações antissemitas que culminaram com a morte de milhões de judeus, testemunhas de Jeová, comunistas e socialistas.
O Brasil é um destes países?
Os arquivos que mostram a postura do governo brasileiro diante do que acontecia na Europa e, principalmente, na Alemanha nazista foram abertos a partir de 1995 com a autorização do Itamaraty. Foi quando tive a oportunidade de analisá-los. Na garimpagem pude constatar que a documentação mostra um Brasil omisso em relação ao nazismo. Ele foi inadimplente na salvação dos judeus.
De que maneira o Brasil contribuiu com o Holocausto?
Grande parte das autoridades políticas que cercavam Getúlio Vargas (o presidente da época), principalmente os ministros, chefes do departamento de imigração e, ainda, a própria polícia brasileira destaco aqui Filinto Müller, que era chefe da polícia se posicionaram contra a entrada de judeus refugiados no Brasil. Müller foi um grande antissemita neste aspecto. Em vez de ajudar os judeus, a polícia começou a vigiar os que já viviam no Brasil e os rotulou de comunistas, subversivos, perigosos para a segurança nacional. Durante a guerra, eles sofreram muitas injustiças por aqui porque eram tidos como súditos do Eixo, pelo fato de serem alemães, austríacos, poloneses. A polícia não fazia distinção entre um alemão e um judeu alemão que perdeu a sua pátria e que foi destituído pelo nazismo. Todos eram considerados súditos do Eixo e foram presos.
Como o governo proibiu a entrada dos judeus? Como isso foi feito para não chamar a atenção?
Milhares de documentos do arquivo histórico do Itamaraty comprovam que os vistos eram indeferidos por meio de circulares secretas. De 1937 a 1948, entre os governos de Vargas e Dutra, são cerca de 20 circulares. Eu calculo que o Brasil chegou a negar 10 mil vistos. Se você imaginar que são 10 mil pessoas que poderiam ter sido salvas...
Houve judeus que conseguiram entrar no Brasil, inclusive no período mais crítico das perseguições nazistas?
Sim. Aqueles que entraram a partir de 1933 provavelmente vieram com visto de turista. O problema é que, por volta de 1938, o governo brasileiro percebeu que existiam muitas pessoas vivendo clandestinamente no país. Uma circular secreta foi emitida: judeu que entrasse como turista precisava apresentar a passagem de volta, o que jamais iria acontecer porque eles estavam falidos. Por isso, alguns conseguiram entrar com documentos falsos, que os declaravam católicos. Você vai ter, neste período, pessoas do baixo clero que forneciam falsos atestados de batismo, inclusive com datas falsificadas. O governo brasileiro só permitia a entrada de católicos que tivessem sido batizados antes de 1933.
Quantos entraram nesta situação?
Imagino que, usando documentos falsos e se passando por católicos, entraram mais de 15 mil. Mas este ainda é um trabalho que precisamos fazer. Começamos um inventário dos judeus alemães que entraram no Brasil durante o nazismo. A ideia é conversar com os descendentes para ver como estas pessoas conseguiram entrar. Precisamos da ajuda destes parentes, porque sabemos que muitos judeus tiveram de falsificar nomes e documentos, o que torna o nosso trabalho quase impossível.
Serviço:
Descendentes de alemães que tiverem interesse em contribuir com a pesquisa podem enviar um e-mail para arqshoah@usp.br. No site www.arqshoah.com.br estarão disponíveis, em breve, os documentos digitalizados a que a professora teve acesso sobre o Holocausto e o antissemitismo.
Colaboraram Amanda Ludwig e Evandro Rocha



