
Dias atrás, a professora Shirley Pijak, 58 anos, que atua no Centro Municipal de Educação Integral Érico Veríssimo, no bairro Alto Boqueirão, ouviu de um aluno a pergunta que esperava há pelo menos uma década: "A senhora é a Shirley da biblioteca, né?" Sim, era ela. E como tantas outras educadoras que deslocaram seu posto de trabalho da sala de aula para a sala dos livros, essa veterana sempre sentiu na pele o anonimato de sua tarefa, refletida na relação com os colegas e no pouco caso dos educandos.
VÍDEO: Confira depoimentos de alguns dos agentes de leitura do município
INFOGRÁFICO: Veja os números por bairros e os livros mais emprestados
Soa absurdo, mas no Brasil a biblioteca ocupa um lugar marginal no sistema de ensino. O assunto é discutido com paixão nos círculos educacionais, mas sem grandes avanços. Ao ser identificada, Shirley suspeitou que alguma coisa tinha mudado. De lugar triste e governado, não raro, por professores ali encostados por força de perícias médicas, o espaço de leitura estaria se tornando um lugar de fato, tão importante quanto o pátio do recreio. Melhor do que isso, um lugar que tem à frente alguém preparado para motivar o trato com os livros. E de quem se sabe o nome.
O caso da "Shirley da biblioteca" não é isolado. A formação de agentes de leitura tende a se tornar uma espécie de MST das letras. Apenas no município de Curitiba, hoje, cerca de 500 educadores e técnicos administrativos da prefeitura são identificados como mediadores da leitura; e 10 mil profissionais do setor foram atingidos por programas de formação. Muitos passaram por capacitações, alguns foram a jornadas literárias, como a de Passo Fundo (RS), uns tantos se reúnem com a frequência das senhoras da capelinha. É fácil identificá-los são ruidosos, alegres, criativos e carregam sacolas de livros para cima e para baixo, fazendo valer com o próprio braço o direito à circulação de informação.
A função que ocupam na escola, claro, ainda provoca estranheza. Entende-se de imediato o que faz um agente comunitário ou um agente de saúde. Já o "agente de leitura" pode soar aos desavisados como mais um a lhes impor tarefas. Eles têm mares a serem navegados. Mas nada se iguala às terras que têm avistado. A reportagem da Gazeta do Povo se reuniu numa escola do Cajuru com 12 profissionais de educação que abraçaram a tarefa da leitura. Eles não concordam em tudo. Mas responderam, em coro, que se sentem sim parte de uma revolução educacional uma revolução feita a duras penas, como todas as que merecem esse nome. E com capacidade de extrapolar os muros da escola. Agente de leitura não bate cartão.
Não é exagero. O debate sobre a formação de leitores é tão antigo quanto o país. Por vias tortas, essa responsabilidade recaiu toda sobre o sistema de ensino. Mas apenas nos anos 1990, com a prova estatística de que a escola não conseguia formar leitores, os primeiros passos largos começaram a ser sentidos. Há pelo menos três marcos dessa mudança, como atesta a professora de Língua Portuguesa Margareth Caldas Fuchs, 54, gerente do Setor de Bibliotecas da prefeitura de Curitiba.
O primeiro foi o movimento de contação de histórias, impulsionado pelo programa Proler, da Biblioteca Nacional. O projeto foi responsável por romper com o silêncio de velório que reinava nas salas de leitura, devolvendo-lhe o ambiente algo teatral e divertido. O segundo marco se deve à mudança de status dos espaços de leitura, que mais e mais se munem das táticas de acolhimento e rejeitam o papel de depósito de gente e de poeira. O terceiro marco, por tabela, diz respeito à formação de agentes. "Foi-se o tempo em que qualquer pessoa servia para a biblioteca. O agente pode surgir naturalmente, mas formá-lo é fundamental", ilustra Tânia Maria Severino, uma das gerentes dos Faróis do Saber na capital.
Tão importante quanto mudar a cara da biblioteca, vale dizer, foi existir um grupo de entusiastas fiel à máxima do "água mole em pedra dura..." Pressão aqui e ali, esses educadores mostraram que não basta emprestar livros. Aprende-se a ler mais e melhor se a leitura for um acontecimento escolar tanto quanto a fanfarra e a gincana. Quando isso acontece, uma leva de crianças, pela vida afora, não vai esquecer o encontro com a literatura que lhe foi preparado por gente como a Shirley, a professora que sabia dos livros.
"Qualquer papel" ganha um leitor
Desde que se tornou agente de leitura na Escola Municipal Eny Caldeira, no bairro Tingui, a professora Juana Helena Colman não vive um dia igual ao outro. São ossos do ofício. Uma das máximas que rege esses profissionais é que cada livro e cada leitor exigem uma dinâmica diferente. Não adianta aplicar regras gerais a leitura é um universo sensível, íntimo e pessoal.
Uma das passagens que Juana adora contar é a do pai de uma aluna, um estrangeiro, que resistia em entrar na biblioteca do colégio, emprestar um livro e arrastar pelo exemplo. Ela usou de todo o seu latim, e nada, até saber que a terra natal do sujeito sofrera um terremoto. Na célebre hora da saída, mostrou-lhe uma reportagem. "Olhe só o que aconteceu com sua cidade!" Foi o que bastou para fisgá-lo. Moral da história: "Qualquer papel com algo escrito pode ser usado para atrair um leitor", resume a professora-agente.
Como brincam as amigas, "Juana é de morte". Ninguém mais se espanta quando coloca livros para fora da biblioteca, pendurados num varal, rompendo com a sisudez. A professora Ângela Maria Agostinho Pereira, 60, segue atrás. Ela trabalha há nove anos na Escola Municipal Maria de Lourdes Pegoraro, no Cajuru, e sua tática é promover cada livro novo que entra para o acervo, tornando-o desejado pelas crianças.
Foi assim com a obra Guilherme Augusto de Araújo Fernandes, de Mem Fox e Julie Vivas, que trata de uma mulher idosa envolta com a perda da memória e às voltas com uma caixa cheia de objetos que a ajudam recordar o que passou. Pois o "lançamento" do livro na sala de leitura da escola incluiu a contação da história e uma caixa com recordações dos frequentadores. Caso alguém não queira participar dessas performances, sem problema: os corredores da escola de Ângela estão forrados de livros, presos à parede, página por página.
Funciona. Indo em fila para a sala de aula, nada de ficar olhando para o cocuruto do coleguinha. Os olhos ficam é pregados no corredor, acompanhando a sequência até chegar à sala de aula. É simples como isso. Mas demorou quase um século para os livros migrarem para fora das bibliotecas escolares, mostrando que se estiverem livres e soltos não deixam ninguém indiferente.
VIDA E CIDADANIA | 2:11
Confira depoimentos de alguns dos agentes de leitura do município.




