
Afonso Ritchielle tem 19 anos e acaba de ser aprovado no vestibular de Economia numa universidade de Curitiba. Apesar da conquista, o rapaz alto e eloquente anda meio ressabiado. Ele acompanha pela imprensa a crise mundial causada pela quebradeira dos bancos americanos e recolhe informações nada animadoras sobre o que vem por aí. Anda até esbanjando no economês. "Sabe o que é, quero trabalhar na bolsa de valores", confidencia.
Quem conheceu o rapaz de outras crises mundiais, jamais poderia imaginar que ele estaria um dia tão afiado em finanças e quetais e o melhor que tivesse algum plano para o futuro. Sua história, afinal, é uma das tantas que perseguem meninos e meninas em situação de rua no Brasil um exército que pode chegar ao assombroso número de 7 milhões de pessoas. E um exército sem grandes sonhos.
Aos 8 anos, Afonso foi abrigado pela primeira vez, perdendo o vínculo com a família, moradora da Vila Verde, na CIC. Passou pelo SOS Criança, pela Obra Adventista, pela República do Piá, até ganhar as ruas, onde morou durante seis meses, exposto a perigos muito maiores do que o sereno e o vento encanado. Tinha a sexta série e a urgência de se adaptar em mais um projeto assistencial este no município de Campina Grande do Sul, região metropolitana de Curitiba.
Foi ali que o circuito de fracassos que o perseguia desde menino finalmente deu trégua, permitindo que chegasse ao estágio em que está hoje o de candidato a funcionário da bolsa de valores. O abrigo se chama Comunidade Beato Sarnelli e é uma iniciativa do padre irlandês Patrick McGillicuddy, de 56 anos, redentorista formado nos Estados Unidos. O projeto pode não ser uma unanimidade na rede de assistência social, mas com certeza representa uma vitória em meio a um setor que vive às voltas com o desencanto. Afonso e outros 31 colegas com os quais mora estão ali para confirmar.
Para que se tenha uma ideia dos ganhos da obra, desde a criação da primeira casa de amparo em 1994, no Parolin padre Patrick assistiu à ascensão de 22 jovens ao curso superior, nove deles já formados e três com mestrado. O histórico dos abrigados se parece são garotos miseráveis, expostos ao abandono, à drogadição, à violência e à via-sacra por um sem-número de abrigos, alternados com estágios mais ou menos longos e, fatalmente trágicos, nas ruas. "Quando comecei, não sabia como ia ser. Tinha 300 jovens cadastrados. Servíamos almoço. Havia uma grande lacuna. Apesar de haver 1001 lugares, caíam de volta na calçada", conta.
O mecanismo que faz com que, uma vez na casa de Campina Grande, eles superem esses traumas e alcancem bons resultados na educação, mereceria um estudo de caso. É inegável que a obra de Patrick aponta caminhos para o setor de infância, adolescência e juventude. Resta dizer quais.
A história toda começa com o impacto sofrido por Patrick ao pisar no Brasil, no início da década de 80. Foi quando se deparou com a juventude desvalida e com a incômoda naturalidade com que boa parte do país lida com isso. Como estava aqui para ser missionário, e tinha trabalhado com meninas em situação de risco social em Nova Iorque, entendeu que era chamado a continuar. O primeiro choque de realidade se deu em São Paulo, quando o cardeal dom Paulo Evaristo Arns tomou-lhe os documentos e a carteira de cigarros e o mandou morar na rua quatro dias. Que o procurasse depois dessa experiência para falar de assistência social.
O irlandês, claro, voltou transtornado pela prova de fogo provavelmente repetindo, a seu modo, a máxima do maestro Tom Jobim: "O Brasil não é para principiantes." Anos depois, já em Curitiba, deu continuidade a seus planos e decidiu atuar na prevenção à exploração sexual de meninas. Foi quando se deu conta de um mal de raiz: a inexistência de programas para jovens com mais de 18 anos. Embora não haja estatísticas confiáveis, sabe-se que, à medida que diminuem as ofertas na rede de proteção à infância e adolescência, crescem as chances de envolvimento em delitos. Chegar à maioridade é uma condenação.
Pois estava decidida qual seria a missão de Patrick em terras paranaenses os jovens adultos em situação de risco social, uma categoria não nominada nos programas sociais. Não foi um mar-de-rosas. O religioso não toca no assunto, mas tudo indica que a condição de padre, oriundo dos EUA e ainda ligado a uma das maiores congregações da Igreja não tenha lhe facilitado muito a divisão do bolo da caridade.
Em miúdos, Patrick teve de se virar. Foi quando a família McGillicuddy entrou na dança e passou a ajudá-lo na construção de um colégio para 60 jovens em Campina Grande do Sul. O lugar erguido em seis meses e inaugurado em 2003 difere, como a água do vinho, de tudo o que já se viu no setor. "Me irrita o tipo de edificações feitas para os pobres no Brasil, a avaria dos serviços sociais. Como entender um hospital que funciona na esquina, de frente para a rua?", critica o padre, com sotaque carregado, em meio à vista que concorre entre as mais bonitas da região metropolitana a de seu educandário.
A casa comunidade é de primeiríssima linha. São 36 mil metros quadrados, piscina de 12 x 8 metros, bosque, salas de aula equipadas de eletrônicos, biblioteca com 10 mil exemplares, revistas e jornais por todos os cantos, laboratórios de ciência. Além dos McGillicuddy, ajudaram a solidificar o local um ministro de estado irlandês, fiéis e os próprios redentoristas, além de uma rede de não mais do que 20 pessoas sensibilizadas com o trabalho do sacerdote.
Para a manutenção da casa, o maior benfeitor é o HSBC. Não se fala em valores, mas sabe-se que mesmo com apoiador, Patrick e seus amigos mais próximos precisam ralar para fechar as contas no final do mês. São necessários R$ 45 mil para que os 32 rapazes possam simplesmente estudar até chegar à faculdade e aos primeiros estágios quando enfim ganham asas. Atividades profissionais não são permitidas antes disso, reafirmando o diferencial da casa de Patrick. Ali é um lugar para estudar.
Eis a questão. É raro uma obra social ter tamanho acento na educação, até porque ex-moradores em situação de rua, ex-dependentes químicos e egressos de famílias desestruturadas são vistos como maus alunos crônicos e comprometidos, o que a comunidade Sarnelli desmente. Ali, professa-se a crença no poder redentor do conhecimento.
"Eles têm de investir muito em si mesmo, é o que digo. O mais difícil é recuperar a autoestima, perceber-se como alguém capaz de crescer. É quando descobrem o mundo do saber, um mundo do qual foram excluídos", defende Patrick.
Quando o jovem entra e muitos chegam a pé, maltrapilhos, no portão, pedindo para ficar se preciso for passa por um tratamento de desintoxicação, o que nunca custa menos de R$ 3 mil aos cofres da casa. Em entrevistas com o diretor e seu único ajudante em tempo integral o irmão Sérgio da Silva são apresentadas as regras disciplinares. Se houver disposição sincera em ficar, o candidato faz um teste para saber qual seu nível de escolaridade. É quando as surpresas acontecem.
É mais do que comum alguém com primeiro ano do ensino médio ter campo de conhecimento digno da quinta série. Tem de dar marcha à ré. Nos anos seguintes, o morador tem aulas particulares com 12 professores, até se juntar às turmas regulares e concluir o ensino médio, no tempo que for preciso. O colégio de Campina, em tempo, é reconhecido pelo MEC, assim como o método aplicado. O resultado é espantoso. "Peguei gosto pela matemática", dispara Afonso. Assim como pela literatura. Há obrigatoriedade de ler um livro por mês e, não raro, vê-se a rapaziada falando de Hemingway e de Faulkner como se estivesse comentando a escalação de Ronaldinho Fenômeno para o Corinthians.
O professor de Português Édson Luiz Kroich, 42 anos, há dois na comunidade, nunca imaginou que ia discutir Hamlet com jovens que conheceram a dureza das ruas. "Essa experiência me abriu para outro mundo. Tive de reaprender a dar aula", entusiasma-se, num intervalo para o recreio. Os programas de aprendizagem são diferentes, mas não é preciso chamar atenção nem ameaçar com nota. "Eles estão aqui porque querem. São uma prova de que o estudo muda as pessoas."
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Serviço
Comunidade Beato Sarnelli telefone (41) 3676-1695.





