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Diplomacia

Os latino-americanos e o nazismo

Historiador viaja por 11 países para escrever livro que revela os bastidores de uma relação ambígua

Adolf Hitler com seu exércio, em Nuremberg, em 1933 | Reprodução do livro
Adolf Hitler com seu exércio, em Nuremberg, em 1933 (Foto: Reprodução do livro)
Tanques alemães defilam em Viena, em 1938, depois da anexação da Áustria pela Alemanha |

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Tanques alemães defilam em Viena, em 1938, depois da anexação da Áustria pela Alemanha

O cotidiano de diplomatas latino-americanos que serviram na Alemanha de Hitler não foi nada fácil. Muitos deles, ao andar na rua, foram confundidos com judeus e, por isso, sofreram diversos tipos de violência. "Como alguns deles tinham o esteriótipo do povo judeu – testa alta, nariz adunco e orelhas de abano – vez ou outra eles eram surrados sem dó", explica o jornalista e historiador Roberto Lopes, autor do livro Missão no Reich, Glória e Covardia dos Diplomatas Latino-Americanos na Alemanha de Hitler, lançado em outubro pela Odisséia Editorial.

Lopes é pesquisador do Laboratório de Estudos da Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer) do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Ele conta que as 540 páginas do livro revelam dezenas de episódios que abarcam o período definido como a "Era Dourada" do nazismo. "É a fase até março de 1939, em que Hitler conquistava povos e territórios sem guerra, em que ‘a nata’ do nazismo ainda se divertia em banquetes seguidos de música, balés e óperas", explica. Lopes comenta que a falta de meios de comunicação instantâneos favorecia a tarefa das Chancelarias da América Ibérica para abafar os casos de violência contra os diplomatas. "Os latino-americanos sofreram discriminação dos alemães nazistas, que os consideravam inferiores e os ridicularizavam, menosprezando-os em eventos oficiais. Isso não impediu que os diplomatas se deixassem fascinar pelos novos regimes totalitários que surgiam na Europa e pela recuperação econômica que promoveram em seus países, como mostram suas cartas e ofícios despachados para seus superiores", afirma o historiador.

O livro é a primeira retomada na investigação dos bastidores desse relacionamento entre a América Latina e o nazifascismo, depois de duas décadas – ou desde que o brasilianista Stanley Hilton e a professora da USP Maria Luisa Tucci Carneiro, coordenadora do Leer, lançaram seus livros recorrendo aos arquivos diplomáticos. Hilton é autor de Suástica sobre o Brasil, que resgata a atuação dos agentes secretos nazistas no país. Maria Luísa é autora de O Anti-Semitismo na Era Vargas, até hoje a mais importante pesquisa sobre a política anti-semita do Itamaraty nas décadas de 1930 e 1940.

Apuração

O jornalista precisou viajar por 11 países das Américas e da Europa para colher os dados que lhe permitiriam narrar esse importante período da história latino-americana. Ele teve acesso a documentos que mostram um universo de informações até então desconhecidas sobre o expansionismo do regime ditatorial alemão (e também do italiano), o rearmamento nazista e a perseguição aos judeus.

Parcela significativa de importantes segredos relatados em Missão no Reich só pôde ser desvendada por intermédio de uma apuração persistente. O pesquisador analisou telegramas, ofícios, relatórios, cartas e anotações pessoais dos representantes latino-americanos que serviram em Berlim e em outras importantes cidades européias. "Foi preciso buscar as pistas iniciais na Europa e nos Estados Unidos – em Austin (Texas), Munique, Paris, Roma – para só depois completar a investigação por meio de abordagens pontuais, objetivas, nos serviços diplomáticos latino-americanos", explica Lopes.

O escritor lamenta, entretanto, que nas Américas do Sul e Central os arquivos diplomáticos estejam praticamente trancados. Houve algum progresso na Argentina. "Lá verificaram se os seus diplomatas foram responsáveis pelo abandono de judeus naturalizados argentinos à morte, em campos de concentração", lembra. "Por aqui, recentemente, houve uma certa abertura do Itamaraty para a publicação de comunicados diplomáticos sobre as restrições ao ingresso de refugiados judeus no Brasil", acrescenta. Mas segundo Lopes, "as ligações entre a América Latina e o nazifascismo ainda permanecem na fria penumbra dos cofres, das caixas, das gavetas fechadas à chave."

Importantes revelações

Missão no Reich traz histórias como o desabafo do líder nazista Robert Ley, um amigo pessoal de Adolf Hitler. Durante um coquetel em Genebra, em junho de 1933, perante jornalistas, chamou de "idiotas" os delegados da América do Sul da Conferência da Organização Internacional do Trabalho que haviam se recusado a apoiar o seu nome para integrar as principais comissões de trabalho do evento.

Outra passagem reveladora é o relato de como um cônsul brasileiro em Munique se tornou amigo de Adolf Hitler e, em 1926, tentou trazê-lo em visita ao Brasil. A viagem só não se concretizou porque o próprio Ministério das Relações Exteriores desaconselhou o presidente Arthur Bernardes a autorizar o convite.

Mas Lopes também apresenta os diplomatas latino-americanos que souberam resistir ao "canto da sereia" do nazismo. "Alguns diplomatas brasileiros chegaram a aconselhar Vargas a não se atrelar a Hitler – protótipo do chefe totalitário –, porque já sabiam da existência dos campos de concentração nazistas em 1933", acentua o pesquisador.

Missão no Reich é o primeiro de uma antologia que terá quatro volumes. Com previsão de lançamento para o ano que vem, a próxima obra terá o título 1939: O Ano das Esperanças Mortas e reunirá a correspondência com que os diplomatas latino-americanos descreveram para os seus superiores a crise que desaguou na invasão da Polônia. "Há documentos curiosos, em que diplomatas latino-americanos lotados em Varsóvia designavam as residências de judeus ricos na cidade como sede de suas representações diplomáticas e consulares", revela Lopes. "Os certificados foram datados do dia em que esses diplomatas se retiraram da capital sitiada pelos alemães e, supostamente, conferiam certa inviolabilidade aos imóveis, contra os desmandos dos invasores." Lopes espera que seu trabalho possa servir de estímulo para os pesquisadores que se dedicam à licenciatura em História. "Infelizmente, hoje, essa categoria parece ser vista com bem menos relevância que tempos atrás", pontua.

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