
Adriano nasceu num bairro de classe média em Curitiba, José cresceu à sombra do tráfico na favela do Parolin. Um tinha o que de melhor o dinheiro oferece, outro se meteu no crime para comprar o tênis da moda. Esses jovens de mundos tão distintos afundaram suas vidas no mesmo vício. A favela onde José conheceu o crack é a mesma em que Adriano deixou parte dos bens da família em troca de pedra. As famílias não se conhecem, mas hoje são movidas pelos mesmos sentimentos e objetivos. À sua maneira, nenhuma delas mede esforços para livrar o filho de vício tão devastador.
São histórias como a de Alcides, profissional liberal bem-sucedido que gastou uma pequena fortuna na luta do filho contra o crack, e da carrinheira Doralice, que sacrificou a prole para tentar salvar o primogênito. Ou ainda a história do casal Arno e Selma, que trancou a família durante quatro meses dentro de casa numa tentativa desesperada de "limpar" o filho mais velho. Essas pessoas, de diferentes estratos sociais, têm o mesmo sentimento de vergonha, mas se revelam resistentes diante dos obstáculos que o vício impõe. A pedido delas, os nomes são fictícios. Mas as histórias são de um realismo impressionante.
O drama dessas famílias tem o crack como fio condutor. Alcides se surpreende ao contabilizar os gastos que teve com Adriano. Somados os custos das 12 internações, do carro, das televisões e outros objetos de valor trocados por drogas, a quantia chega perto de R$ 200 mil nos últimos dez anos. É algo com que jamais sonhou a mãe de José. A carrinheira Doralice mede seus "gastos" pelo tempo que dedica à recuperação do filho. "Acho que nenhuma mãe ficou tão perto do filho que nem eu. O problema é que essa coisa (o crack) mata a pessoa por dentro."
Alcides diz que o filho ficou abalado com seu divórcio e três anos depois, aos 14, começou a fumar maconha. O caso se agravou aos 19, quando passou para a cocaína e logo para o crack. A primeira internação aconteceu à força. Depois vieram tentativas de recuperação nas clínicas mais caras de Curitiba, além de fazendas próprias para esse tipo de tratamento em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Hoje, aos 29 anos, está na décima segunda internação, no interior paulista. Nesta clínica o custo é de R$ 15 mil. Em Curitiba, Alcides gastava R$ 3 mil por semana.
Doralice luta há três anos contra a dependência química de José, hoje com 15. Largada pelo marido há sete anos, passou a catar papelão para sustentar os filhos de 3, 5 e 8 anos, que ficavam com os vizinhos enquanto ela trabalhava. José freqüentava a escola, mas logo viraria aviãozinho do tráfico. Doralice nem desconfiava das roupas novas. "Ele dizia que tinha ganhado", conta. Mas um dia a ficha caiu. "Eu sempre falava que esse negócio de maconha não era uma coisa boa, mas não adiantava, ele tava sempre junto com os piás que fumavam", conta a mãe.
Arno se vê obrigado a pagar toda semana entre R$ 40 e R$ 50 de uma dívida do filho Felipe, de 17 anos, com o tráfico. "Eles nunca dizem o valor total, que é para poder continuar explorando", diz. O pai não sabe até quando terá de pagar a extorsão, mas não quer pôr em risco os filhos menores, de 8 e de 14 anos. "Tenho que tirar da boca dos pequenos", lamenta. Várias vezes Felipe trocou as roupas dos irmãos por drogas. Tem sido assim desde que se viciou, aos 14. "Ele entrou direto no crack", diz o pai.
Alcides ficou chocado ao ver o estado do apartamento que montou para o filho. Faltava geladeira, sofá, cama, mesa. Tudo foi trocado por crack. Decidiu então instalá-lo num hotel, onde acabou tendo de pagar por 12 televisões e alguns videocassetes também barganhados. Até as roupas Adriano costumava usar como moeda de troca. No episódio mais recente, Alcides comprou um Renault Clio para o filho. Três meses depois, Adriano entregou o carro a um traficante de 16 anos na favela do Parolin. "Deve ter vendido por 200 ou 300 reais", lamenta o pai.
Doralice só se deu conta da gravidade do problema quando o filho começou a passar noites seguidas fora de casa. O crack já o fisgara. Ela sentiu-se culpada pelas constantes ausências e quis recuperar o tempo. Analfabeta e sem dinheiro, bateu à porta de quase toda a vizinhança em busca de ajuda. Depois de aprender o rumo de um dos seis Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) mantidos pelo município para atender dependentes químicos, acabou voltando sete vezes. Numa dessas idas, José ficou internado oito dias no CAPs Centro Vida, mas fugiu.
Arno internou o filho três vezes. Na primeira, agüentou seis dias numa clínica em São Francisco do Sul (SC). Semanas depois da fuga pediu para voltar. A nova tentativa durou dez dias. Também ficou um mês numa casa de apoio mantida pelo município. Ao sair, voltou para o vício. Foi então que os pais chegaram ao extremo de se trancar com todos dentro de casa, só saindo quando necessário para não deixá-lo sozinho. Arno, que é pedreiro, e Selma, massoterapeuta, acabaram perdendo os clientes. "A gente ficou dependendo dos vizinhos até para comer", diz Arno. Eles moram no bairro Sítio Cercado.
Alcides sofre toda vez que Adriano está prestes a receber alta, porque sabe que três ou quatro meses depois terá de interná-lo novamente. "A gente só tem sossego quando ele está internado", diz. Em poucos dias ele estará de volta. Alcides não pode acomodá-lo em casa por causa dos filhos menores do segundo casamento. Por sorte, a namorada do rapaz está disposta a acolhê-lo uma vez mais. "Depois de tanto tempo e tantas frustrações, seu dia-a-dia passa a ser um inferno", lamenta o pai. "Às vezes fico pensando se não seria melhor para todos se ele morresse."
Doralice se viu obrigada a comprometer o futuro dos filhos menores para tentar salvar o mais velho. Já não trabalha tanto para ficar mais tempo com ele e agora os outros, de 10 e 12 anos, também têm de botar comida na mesa, mendigando ou catando papel reciclável. Não foram poucas as vezes que trancou as portas do barraco para José não sair atrás de crack. "Às vezes não dá para segurar porque ele é muito forte", diz a mãe. A cada crise, Doralice acaba arrastando o filho para os centros públicos de desintoxicação. "É difícil, mas enquanto eu tiver força eu não vou desistir."
Arno não é pai biológico de Felipe, mas o registrou tão logo se casou com Selma. Nunca fez distinção entre ele e os filhos do primeiro casamento, ou dos dois que teve com a nova mulher. Desde que descobriu o vício do rapaz, jamais deixou de apoiá-lo. Felipe está na segunda passagem pela Delegacia do Adolescente Infrator. Na primeira, ficou uma noite numa cela acusado de furto e agora ficará 45 dias por tentativa de assalto. É Arno quem vai às audiências. E diz, convicto: "A gente não vai desistir dele."



