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Cidade inventada

Papelada da Cohab virou álbum de família

Em uma semana, quando a Vila Nossa Senhora da Luz completar 40 anos, os moradores mais nostálgicos, via de regra, vão trocar uns gracejos com os vizinhos de muro. Não custa nada. É só sair de casa à moda vileira, de chinelo de dedo e sem camisa, cruzar alguma das cerca de 120 ruelas de inacreditáveis sete passos e constatar o que salta aos olhos. Sobrou muito pouco do bairro inaugurado em 1966 para desfavelizar Curitiba.

O número de moradias passou de 2,1 mil para 2.865, por conta dos puxadinhos – 2,8 mil com serviço de água e esgoto, de acordo com o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc). A população de 11 mil na década de 60 beira hoje os 20 mil – 30 mil se for contada a Grande Vila, a Nossa Senhora da Luz mais as colegas próximas. De acordo com a Cohab de Curitiba, há no momento apenas um mutuário, provavelmente pagando um refinanciamento encrencado. Coisa do passado: para a maioria, os talões de prestação são agora documentos amarelados exibidos com o orgulho de um álbum de família.

O isolamento dos primeiros tempos acabou há 30 anos, quando os conjuntos Oswaldo Cruz 1 e 2 ocuparam o posto de primos ricos da vila. Sem falar na companhia das mais de 80 áreas habitacionais que formam a Cidade Industrial de Curitiba (CIC) – um descomunal bairro coletivo de 170 mil habitantes, que desde sua criação, em 1973, tirou parte da identidade da vila ao não reconhecê-la como um mundo à parte – o que de fato é.

São raras as casas que mantêm o desenho e a metragem inicial. Um dos atestados de que os tempos de penúria passaram é reformar o "predinho", o que faz dos modelos originais uma espécie em extinção. Em companhia do bancário Getúlio dos Santos, 51 anos; do metalúrgico Marco Antônio da Silva, 46; do radialista aposentado Miguel Jorge, 63; e do líder comunitário Iranei Fernandes, 43, quatro veteranos da região, a reportagem circulou por parte das 12 praças, alamedas e ruelas atrás de casas que ainda mantivessem a estrutura criada pela equipe de Alfred Willer. Nada feito. Ou quase.

A auxiliar de serviços gerais, Denise Santos, 41 anos, está entre as proprietárias de uma dessas raridades. Herdou a morada da mãe, tem cinco filhos, sete cachorros e um sótão – de pinheiro – onde dormem os meninos. Quando sair um dinheiro, garante, vai pôr tudo abaixo.

O posto de a mais preservada fica para a residência do desempregado Acir Cardoso, 46 anos. Estão ali as janelas de madeira, as tramelas, o forro dos primeiros tempos e os sinais de quatro décadas de uso. "Não está à venda", avisa para os amigos, que invadem o local para recordar "como era mesmo."

Embora estejam sempre a postos para falar dos primeiros tempos da Vila Nossa Senhora da Luz, os moradores não dizem sentir falta do tempo em que todo dia chegavam caminhões cheios de famílias "e seus cachorros", diverte-se Getúlio. A graça só acaba se o assunto for drogas e violência. Não tem conversa com ninguém. Essa cidade tem suas leis.

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