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Saúde

Qualidade de vida até o fim

Os cuidados paliativos em pacientes terminais não significam abandono do tratamento contra a doença. O objetivo é viver bem o que resta para ser vivido

Averaldo Rodrigues cercado pela família: sete anos em tratamento por causa de um câncer de fígado que o levou em agosto | Ruy Tavares
Averaldo Rodrigues cercado pela família: sete anos em tratamento por causa de um câncer de fígado que o levou em agosto (Foto: Ruy Tavares)
Arli do Rosário conta um dia de cada vez. Já chegou aos 78 anos, 9 meses e 17 dias |

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Arli do Rosário conta um dia de cada vez. Já chegou aos 78 anos, 9 meses e 17 dias

Não bastasse o diagnóstico ser assustador o bastante, o tratamento de doenças agressivas como o câncer exige condutas médicas que envolvem o paciente e a família em decisões cruciais. Muitas vezes é preciso optar entre brigar com a doença ou preservar o pouco de saúde que o indivíduo ainda tem. "Não é uma decisão fácil, nem para o médico, nem para a família", diz o oncologista Danilo Amaro Andrade, do Hospital Vitória, de Curitiba. O conceito de medicina paliativa frequentemente é confundido com o "não tratamento" da doença. O foco não é mais o tumor, mas sim o paciente, suas necessidades físicas, psicológicas e espirituais. Segundo a Orga­nização Mundial de Saúde (OMS), o cuidado paliativo tem como objetivo a qualidade de vida do paciente e de sua família, diante de um problema de saúde que ameaça a vida. A ideia é prevenir e aliviar o sofrimento, tratar a dor e proporcionar conforto, sem o objetivo de cura.

Nessa nova rota, o médico corre o risco de ver a proposta de mudança de conduta como uma postura passiva, de desistência em relação ao avanço aparentemente descontrolado dos sintomas. Por isso a análise é tão difícil e criteriosa. "Fica ainda mais complicado diante da tecnologia disponível hoje para o tratamento do câncer, por exemplo. E a longevidade precisa entrar na avaliação: um sujeito com 70 anos pode ter ainda mais 20 anos de vida pela frente. Qual vai ser sua condição neste período, depois do diagnóstico e tratamento da doença?", pondera o médico Selmo Minuceli, oncologista e hematologista do Laboratório Frischamnn-Aisengart, de Curitiba.

A agressividade do tratamento de câncer, com efeitos colaterais severos no organismo, é a principal justificativa para adotar a modalidade paliativa. Mas o nível de desenvolvimento do tumor e a condição de saúde geral do paciente também precisam ser ponderados. "Há tumores curáveis e incuráveis. Os reversíveis, em geral, são os em fase inicial. Os avançados exigem procedimentos mais agressivos, nem sempre suportáveis para quem tem a saúde debilitada por comorbidades, como pacientes idosos", explica Andrade. Mas a idade não é critério para contraindicar tratamentos clássicos ou ativos contra o câncer. "É um conjunto de fatores que entra na avaliação. Curabilidade do tumor é o principal e isso pode ocorrer em pacientes de qualquer faixa etária", salienta.

O tratamento paliativo oferece conforto, administrando sintomas como dor e inapetência, com acompanhamento médico e multidisciplinar para o paciente e a família. "A relação médico-paciente é fundamental para o sucesso desse procedimento. Além da confiança, deve haver muita paciência do profissional de saúde, que precisa estar presente e monitorar episódios diversos – como vômito e diarreia, que podem levar à desidratação –, para manter o equilíbrio", explica Andrade. O objetivo é dar condições de atividade diária pelo maior tempo possível. "É preciso ter em mente que a evolução da doença é inevitável. É como o processo de crescimento de uma criança, só que invertido. Cada dia é uma pequena vitória, por isso a família precisa se preparar e estar envolvida também", diz.

O aposentado Averaldo Barros recebeu o diagnóstico de câncer no fígado em 2004. Fez uma cirurgia para retirar o tumor de 700 gramas – que lhe custou também a extração de cinco costelas – e adotou um tratamento clássico de quimioterapia e radioterapia aos 69 anos. Os exames complementares indicaram metástase na coluna e no pescoço. Após a primeira bateria de tratamento e ciente dos efeitos dos medicamentos, aceitou o tratamento paliativo, com quadro de saúde estável. Viveu sete anos com a doença, cumprindo atividades diárias com família e amigos, até falecer em agosto, com 75 anos. Neste período, viu amigos e parentes sucumbirem ao bombardeio de medicamentos e rotina hospitalar contra o câncer. "Ele enterrou uns cinco amigos no tempo em que esteve doente. Tinha uma fé inabalável e esteve presente até o final", conta a filha Carla Nappa.

O perfil do paciente também é importante na opção pelo tratamento paliativo. "Há os que fazem questão de acompanhar a evolução do tratamento, os que deixam por conta da família e os que negam a doença. Em cada um deles, a conduta do médico é distinta", explica Minuceli. A técnica em enfermagem aposentada Arli Conceição do Rosário descobriu um tumor no pulmão há três anos. Apesar do acompanhamento que fazia, acha que teve a saúde negligenciada pelo médico na época. "Reclamava de dor para respirar, falta de apetite. Ele dizia que era a ‘bronquitezinha’", diz. Depois de muita insistência, fez um exame no pulmão, que indicou o tumor. Investigações complementares confirmaram o diagnóstico. "Optei por não fazer a cirurgia. Trabalhei em hospitais e vi o resultado da terapia nos pacientes. Não quis isso pra mim", conta. Dois anos depois de descobrir a doença – que só revelou à família quando foi consultar um especialista –, Arli vive um dia de cada vez. "Tenho 78 anos, nove meses e 17 dias", diz. Fez a quimioterapia inicial e hoje faz manutenção em casa. "Quase morri com a primeira aplicação de medicamento." Passa os dias em casa, onde cumpre uma rotina leve que divide com o filho. "Hoje, por exemplo, vou almoçar fora. Não consegui fazer comida, estou com dores nos braços", diz.

Profissionais garantem suporte à família

A doença é um visitante indesejável, que chega sem ser convidado e se instala dentro de casa, no meio da família. Não é possível expulsá-la e, muitas vezes, fica difícil desassociar o paciente do seu problema de saúde. A condução terapêutica familiar precisa ser sistêmica: avaliar a participação de cada um dentro dessa nova ordem doméstica, desde o envolvimento, a negação, os conceitos de perda e a dedicação dos familiares nesse novo arranjo imposto pela doença.

Essa conduta de tratamento familiar – e não com foco apenas no indivíduo doente – é a proposta do médico psiquiatra John Rolland, do Centro de Saúde Familiar de Chicago, ligado à Universidade de Chicago (EUA). Rolland vem a Londrina para ministrar um workshop para profissionais de saúde com enfoque no atendimento de famílias com doenças crônicas, terminais e perdas.

Uma das preocupações da terapia proposta pelo médico é impedir que o paciente seja visto como problema central do núcleo familiar. "Ele é mais uma vítima dessa doença, a principal dela. É preciso mapear a família e organizar o papel de cada um para tornar o tratamento e a recuperação do paciente mais eficientes", explica a psicóloga Leda Meda Caetano, ex-aluna de Rolland. Sem o suporte adequado, a família corre o risco de adoecer em outros aspectos, e contaminar ainda mais o ambiente em que o paciente está inserido. "O objetivo é trabalhar a resiliência, que é a capacidade de superar a crise e se fortalecer com ela", explica. (APF)

Serviço:

Workshop Internacional "Um modelo de Atendimento a Famílias com Doenças Crônicas, Terminais e Perdas", dias 22 e 23 de outubro, em Londrina. Inscrições pelo site www.ftsa.edu.br/workshop até o dia 20 de outubro ou no local do evento, no dia 22 de outubro. Informações pelo telefone (43) 3327-6676 , pelo e-mail john@ftsa.edu.br.

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