
O caso do juiz que anulou um contrato de união estável firmado por dois homens levantou uma questão em todo o Brasil: pode um magistrado decidir de forma contrária à suprema corte do país? Em maio, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu como entidade familiar a união estável entre pessoas do mesmo sexo. O juiz Jerônimo Pedro Villas Boas, titular da 1.ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia, porém, ignorou a decisão e, na semana passada, anulou a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres. Por mais estranho que possa parecer, no Direito brasileiro nem todas as decisões do STF vinculam os magistrados, o que significa dizer que os juízes não são obrigados a seguir toda e qualquer tipo de decisão da suprema corte. Os magistrados brasileiros só ficam restritos ao entendimento adotado pelo STF quando a decisão tomada tenha efeito vinculante. "Se não houver efeito vinculante pode divergir, se houver efeito vinculante não pode", explica o doutor em Direito pela Universidade Mackenzie Ives Gandra Martins.
O efeito vinculante, por sua vez, só ocorre quando o STF edita a chamada súmula vinculante, depois de reiteradas decisões no mesmo sentido e sobre o mesmo tema, ou quando faz o chamado controle concentrado de constitucionalidade, exercendo seu papel de guardião da Constituição Federal. O controle concentrado de constitucionalidade ocorre por meio de ações específicas: ação direta de inconstitucionalidade (Adin), ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).
Nessas ações não se coloca em jogo o direito específico de "A" ou "B", mas de toda a coletividade. É o momento em que o Supremo diz se determinada lei ou ato normativo é constitucional ou não e qual interpretação deve ser levada em conta. Por isso, diz-se que o efeito dessa decisão é vinculante e a eficácia é erga omnes, ou seja, "vale para todos". O STF pode ainda, em outros casos específicos, considerar que há repercussão geral e resolver dar efeito vinculante à sua decisão.
X da questão
A decisão do STF de equiparar os direitos de casais de pessoas do mesmo sexo aos de casais de heterossexuais ocorreu justamente em um julgamento conjunto da Adin 4277 e da ADPF 132. Ou seja, a decisão sobre o assunto se revestiu de efeito vinculante e não poderia ser desrespeitada por nenhum magistrado brasileiro. É por isso que, segundo os especialistas, o juiz Villas Boas, por mais que não concordasse com a decisão do Supremo, jamais poderia ter anulado a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres.
Esse desrespeito, porém, não é tão incomum, como assevera a advogada especialista em direito homoafetivo Chyntia Barcellos, que representa o casal. "Por isso mesmo, a própria Constituição prevê o instrumento da Reclamação Direta ao Supremo", diz. Segundo ela, a Reclamação ao Supremo foi uma das primeiras medidas tomadas após a anulação da união feita pelo juiz goiano. Embora a corregedoria do Tribunal de Justiça de Goiás tenha anulado a decisão de Villas Boas, o juiz recorreu e não se sabe o que poderá acontecer até que seja julgada a Reclamação no STF.
Esse desrespeito, de acordo com o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Egon Bockmann Moreira, revela um problema institucional grave. "Ao decidir contra uma decisão do STF com efeito vinculante, o magistrado está dizendo aos seus jurisdicionados que eles não precisam respeitar as decisões judiciais, já que ele mesmo não respeita a decisão do tribunal superior."
Gandra lembra que, quando há efeito vinculante, a opinião pessoal do magistrado não pode prevalecer. "Como professor, eu acho que o STF extrapolou suas atribuições, legislou e errou porque a Constituição considera explicitamente que a união estável acontece entre homem e mulher. Mas, se eu fosse magistrado, teria de decidir conforme o entendimento do Supremo", afirma. "Não necessariamente deve-se concordar, mas decisão com efeito vinculante tem de ser respeitada", complementa o presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados de São Paulo (OAB-SP), Dircêo Torrecillas Ramos, outro jurista que também sustenta que o STF errou.
Justiça estuda punição
Dois dias depois de o juiz Jerônimo Pedro Villas Boas, da 1.ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia, anular a união estável de Liorcino Mendes e Odílio Torres, a desembargadora-corregedora do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO), Beatriz Figueiredo Franco, revogou a decisão do magistrado. Villas Boas recorreu da decisão. Segundo a assessoria do TJ-GO, a corregedoria do tribunal estuda se haverá punição a Villas Boas. Juiz há 20 anos, Villas Boas é vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros e pastor da Igreja Assembleia de Deus.
O casal Liorcino Mendes e Odílio Torres fez uma reclamação do juiz ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no site da instituição. A defesa do casal também entrou com uma Reclamação contra Villas Boas no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é reverter a decisão do juiz, mesmo que o recurso dele no TJ-GO seja aceito. A Reclamação ficará registrada no histórico funcional do juiz e será encaminhada aos órgãos disciplinares do Judiciário.
A defesa também estuda entrar com um pedido de indenização contra Villas Boas, já que teria sido dele a iniciativa de dar publicidade ao caso. "Como é caso de Direito de Família, há segredo de justiça", explica a advogada do casal, Chyntia Barcellos. A Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás apresentará uma reclamação contra o juiz na Comissão de Direitos Homoafetivos do Ministério da Justiça. A reportagem tentou contato com Villas Boas, mas não houve retorno.
Casamento
Enquanto a pendenga jurídica não se resolve, Liorcino Mendes e Odílio Torres firmaram outro contrato de união estável, desta vez no Rio de Janeiro. A cerimônia se transformou em um protesto coletivo: 43 casais homossexuais firmaram compromisso em cartório na mesma cerimônia. Em outros cantos do país, a briga já não é mais para assegurar a união estável gay. A legislação brasileira diz que deve ser facilitada a conversão da união estável em casamento. E isso já começa a acontecer.
Dois homens que vivem em Jacareí (SP) conseguiram converter sua união estável em casamento civil. Segundo a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), foi o primeiro casal gay a ter o casamento reconhecido no Brasil. No Distrito Federal, duas mulheres também conseguiram converter a união estável em casamento. Em sua decisão, a juíza Júnia de Souza Antunes, da 4.ª Vara de Família do Distrito Federal, afirmou que a decisão do Supremo Tribunal Federal não deixou espaço para decidir de outra maneira. (TC, com agências)
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