Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Morosidade

Recursos são tábua de salvação

Mau uso do princípio constitucional da ampla defesa abarrota o Judiciário de apelações e dificulta penalização

Crimes que podem não ter castigo: Abib Miguel,acusado de desviar milhões, alega problemas mentais e  Fernando Ribas Carli Filho, denunciado por mortes em acidente de trânsito, pode utilizar múltiplos recursos a seu favor | Jonathan Campos/ Gazeta do Povo e Marcelo Elias/ Gazeta do Povo
Crimes que podem não ter castigo: Abib Miguel,acusado de desviar milhões, alega problemas mentais e Fernando Ribas Carli Filho, denunciado por mortes em acidente de trânsito, pode utilizar múltiplos recursos a seu favor (Foto: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo e Marcelo Elias/ Gazeta do Povo)
O ex-juiz Lalau, acusado por desvios, alegou problemas de saúde |

1 de 2

O ex-juiz Lalau, acusado por desvios, alegou problemas de saúde

Condenado por mortes em acidente, o ex-jogador Edmundo teve pena prescrita |

2 de 2

Condenado por mortes em acidente, o ex-jogador Edmundo teve pena prescrita

Doze anos após ser condenado pela morte de três pessoas em um acidente de carro, o ex-jogador Edmundo viu sua pena prescrever. Livre como sempre esteve, não deve mais nada a ninguém. O caso do ex-deputado estadual Fernando Ribas Carli Filho, acusado de crime idêntico, parece seguir caminho semelhante. Já o ex-juiz Nicolau dos Santos Neto, o Lalau, condenado por desviar R$ 170 milhões do Fórum Trabalhista de São Paulo, foi beneficiado com prisão domiciliar ao alegar problemas de saúde. O mesmo alega agora o ex-diretor-geral da Assembleia Legislativa do Paraná Abib Miguel, acusado de chefiar uma quadrilha que desviou pelo menos R$ 200 milhões.A repetição desse enredo, numa sucessão de crimes sem castigo, reforça a desconfiança sobre como e para quem se faz Justiça no Brasil. Uma resposta possível está no mau uso do princípio constitucional da ampla defesa, que abarrota o Judiciário de apelações. Muitos recursos não têm outro propósito exceto retardar o processo. A isso se chama de procrastinação, um termo tão feio quanto a intenção de alguns advogados de defesa.

"Indústria do recurso"

O fato é tão verdade que o próprio presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Cezar Peluso, iniciou uma cruzada pelo fim da "indústria do recurso".

Estudo da Fundação Getúlio Vargas aponta 37 vias de acesso ao STF, por meio de embargos, recursos extraordinários, agravos regimentais e de instrumento, entre outros. Todas impedem o trânsito em julgado da decisão. Às vezes elas são tantas que levam à prescrição da pena, caso de Edmundo, ou retardam o processo a ponto de beneficiar o réu pela idade, como o juiz Nicolau, hoje octogenário. A estratégia tem vários propósitos, nem sempre a prescrição. Por vezes, a intenção é mais dissimulada.

No caso de homicídio de grande repercussão, a defesa busca ganhar tempo não ne­­ces­­sa­­riamente para que a pena caduque, mas com o objetivo de abrandar a memória dos fatos, aplacar a opinião pública. Parece ser o caso de Carli Filho, que provocou a morte de duas pessoas em um acidente de carro na madrugada de 7 de maio de 2009, em Curitiba. A defesa protocolou um recurso extraordinário e outro especial ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, na tentativa de evitar o julgamento popular. Uma aposta no tempo como moderador.

Passados dois anos e meio do acidente, a opinião pública ainda está desfavorável ao ex-deputado, mas o estado de ânimo pode arrefecer se o caso se arrastar por mais alguns anos. Nisso aposta a defesa. O distanciamento do fato pode afetar a memória e o fator psicológico dos jurados, na hipótese de júri popular. O mesmo se dá em processos de ordem política, quando o tempo "atenua" os efeitos da pena. Uma eventual condenação por corrupção, por exemplo, não teria o mesmo reflexo político entre os eleitores quando proferida em um tempo distante do fato.

Estratégia tem início no inquérito

A estratégia de retardar o processo pode começar quando o acusado se esquiva de receber a citação do oficial de Justiça, ou quando a de­­fesa arrola testemunhas com en­­dereço errado ou dificulta a apresentação do réu. Até o habeas corpus (HC) se torna um meio de travar o processo. No sistema atual, proliferam as prisões preventivas ilegais, e a demora para a conclusão do processo é tanta que leva a Justiça a conceder o HC porque a prisão passa a ser ilegal.

Segundo promotor Rudi Rigo Burkle, na fronteira é comum advo­­gados arrolarem testemunhas de fora do país, forçando a necessidade de carta rogatória, que leva até três anos para retornar. Também acontece de o réu arrolar testemunhas de caráter apenas abonatório, sob o argumento de que isso pode ajudá-lo no tribunal. "Infelizmente é o jogo", diz Burkle.

No início do ano, dois advogados foram condenados a uma multa de R$ 700 mil pelo Tribunal de Justiça de São Paulo por apresentar recursos desnecessários. Alguns advogados concordam que nem sempre um processo na OAB é suficiente para inibir más condutas.

Político sonega dado

Em casos de investigação de políticos, é comum a defesa sonegar documentos de forma a dificultar a instrução do processo, diz o promotor Rudi Rigo Burkle, coordenador em Foz do Iguaçu do Grupo Especial de Combate ao Crime Organizado, do Ministério Público do Paraná. Por exemplo, papeis costumam chegar incompletos ao MP, que tem de fazer novo pedido ou usar recursos judiciais para obtê-los quando percebe na defesa o nítido propósito de ocultar informações. Isso leva à perda de tempo.

"O abuso é uma exceção", ameniza o presidente da Associação dos Magistrados do Paraná, o juiz Gil Guerra. Na média, diz, os recursos são usados de modo razoável. Para ele, a Justiça presume que as partes estão usando com responsabilidade os recursos disponíveis. O advogado tem de exauri-los e se o juiz não aceitá-los pode ser acusado de cercear a defesa, podendo levar à anulação do processo. Segundo Guerra, não é fácil identificar o que é necessário para o processo e o que é protelatório.

* * * * * *

Interatividade

Como a Justiça poderia reduzir o número de recursos e apressar julgamentos?

Escreva para leitor@gazetadopovo.com.br

As cartas selecionadas serão publicadas na Coluna do Leitor.

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.