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Religião

Santo Daime: usos, restrições e preconceitos

Ainda se sabe muito pouco sobre os efeitos do ayahuasca. As pesquisas científicas são recentes e os tabus, enormes

 | Fotos: Marcelo Elias/Gazeta do Povo
(Foto: Fotos: Marcelo Elias/Gazeta do Povo)
Mistura do cipó caapi e da folha chacrona, o uso do ayahuasca é permitido apenas nos cultos religiosos |

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Mistura do cipó caapi e da folha chacrona, o uso do ayahuasca é permitido apenas nos cultos religiosos

A morte do cartunista Glauco Vil­­las Boas, na madrugada do dia 12, co­­locou em destaque a religião daimista e o chá ayahuasca. O cartunista foi fundador de uma igreja de nome Céu de Maria, que se­­gue os preceitos do Santo Daime. Misturando a religião com o assassinato e o tabu sobre o uso do chá, as informações nem sempre são acer­­tadas. Para tentar desmistificar o assunto, a reportagem conversou com especialistas.

A história do ayahuasca é antiga. Começou por volta de 1930 e se confunde com a colonização e a urba­­nização do Acre (veja mais nesta página). Mas só recentemente o chá passou a ser estudado e, mesmo assim, ainda não há registros científicos totalmente confiáveis. Do ponto de vista farmacológico, o ayahuasca (que é a mistura do cipó caapi e da folha chacrona) contém substâncias psicoativas (como a dimetiltriptamina – DMT), por isso só é permitido o seu uso nos cultos religiosos. É proibido comercializar (a não ser para os cultos) e fazer publicidade.

Essa regulamentação foi feita em 2006 pe­­lo Conselho Nacional Antidro­gas (Conad) e foi publicada em ja­­neiro deste ano. Além de restringir o uso do chá à religião, o Conad não indica o consumo da substância con­­comitantemente a medicamentos antidepressivos, álcool, drogas ilícitas e para pessoas que tenham algumas doenças mentais como esquizofrenia, psicose e bipolaridade. "O chá atua em al­­gumas áreas cerebrais, o que pode agravar o problema dessas doenças ou do uso de drogas. Por isso, nesses casos, ele é contraindicado", afirma o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira Filho, que fez parte do grupo do Conad que criou a regulamentação.

Como a expressão do culto religioso e da fé é um direito constitucional, mulheres grávidas e crianças são liberadas para tomar o chá, mas o psiquiatra não recomenda o uso justamente porque não existem estudos que comprovem se há ou não algum tipo de problema. "O feto tem uma estrutura muito delicada e o chá atua no cérebro, por isso não recomendo. Mas também não vamos proibir", diz. Sil­­veira fundou o primeiro grupo cien­­tífico brasileiro, na Univer­si­­dade Federal de São Paulo, que es­­tuda os efeitos do ayahuasca, mas lembra que as poucas pesquisas desenvolvidas até agora só foram possíveis graças ao governo americano, que bancou os custos. "O or­­ça­­mento é reduzido e o governo bra­­sileiro não tem verbas para es­­sa área", comenta. Os experimentos, até hoje, foram testados apenas em ratos. "Nos ratos, a ingestão de 50 vezes a dose tomada em um culto é letal. Mas isso também é relativo, porque a concentração da substância depende muito de como o chá foi preparado. Não há uma regulamentação sobre isso."

A antropóloga Beatriz Labate, que estuda o assunto há 14 anos e tem sete livros publicados sobre drogas em geral, lembra que os grupos que usam o chá (veja quais são nesta página) têm uma visão responsável sobre o uso, por isso escolhem a dose em função de diversos elementos, como idade, peso, sexo, há quanto tempo frequenta a igreja e como está a saúde psicológica da pessoa.

"Existe um critério de seleção, um conhecimento empírico acumulado que tem valor. O sucesso e as conquistas são infinitamente maiores que os possíveis problemas", afirma. Para ela, é preciso haver mais pesquisas que avaliem melhor os riscos e benefícios. "Sempre se parte de um pressuposto negativo, de que as drogas fazem mal. Caso não se prove que fazem mal, se assume que fazem. Isto deveria ser invertido: primeiro se prova e, se forem ruins, de­­pois se proíbe."

O chá também não deve ser usado com fim terapêutico, se­­gundo o Conad. Alguns fiéis di­­zem que encontraram a cura do ví­­cio em drogas por meio do ayahuasca, mas Silveira lembra que só o chá em si não é prova de cura. "Isto é respeitado porque existe, por trás de tudo, o lado religioso, a crença", explica.

As pessoas interessadas em ex­­pe­­rimentar o chá preenchem uma ficha declarando não ter ne­­nhuma característica que se relacione com as restrições impostas pelo Conad, além de uma palestra sobre o que é o ayahuasca e, de­­pois, podem fazer parte do culto. "É possível que pessoas procurem o chá por curiosidade, pois esse anseio por experiência é algo legítimo e os grupos sabem lidar com isso. E isso não se torna um problema porque, quem não tem a identificação religiosa, dificilmente permanece nesses lugares", afirma Beatriz.

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