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Vítima do abuso de força da polícia, Ismael nunca mais foi o mesmo: ver alguém de farda o deixa em pânico | Brunno Covello/ Gazeta do Povo
Vítima do abuso de força da polícia, Ismael nunca mais foi o mesmo: ver alguém de farda o deixa em pânico| Foto: Brunno Covello/ Gazeta do Povo

Homem foi vitimado duas vezes pela PM

O vigilante Cleomar Cândido Cardoso vive à base de remédios: 19 comprimidos por dia. Toma os medicamentos não só para controlar suas crises convulsivas, mas para apagar as marcas psicológicas deixadas pelas torturas. Afastado do trabalho, ele frequenta semanalmente sessões psiquiátricas. "Depois das torturas, desenvolvi transtorno bipolar e fiquei mais agressivo. É revoltante lembrar que fui tratado como cachorro", diz.

Cleomar é "reincidente" na tortura. O primeiro caso ocorreu na tarde de 15 de agosto de 2011. Ele estava em um bar perto de sua casa, quando foi abordado por policiais. Como a descrição do suspeito de ter vendido um moto furtada batia com o tipo físico de Cleomar, ele foi detido e levado à 4.ª Companhia do 13.º Batalhão da Polícia Militar. Diz ter sido espancado por 40 minutos.

O laudo do IML atesta escoriações na cabeça e em todo o corpo, além de hematomas na região lombar, glúteos e pernas. Cleomar só foi liberado após não ter sido reconhecido pelo comprador da moto, que foi preso. Ele ainda guarda em casa a camiseta que vestia quando foi agredido. Mesmo assim, o processo foi arquivado pela Justiça Militar.

Seis meses depois, o vigilante foi detido por falar ao celular enquanto dirigia e voltou a ser torturado. Hoje, trocou de carro e se mudou de casa. "Eu não denunciei esta segunda vez. Infelizmente, não tem o que fazer.", lamenta.

Impunidade

"Você toma tapa na cara de graça e eles continuam em liberdade", diz vítima

Quase um ano e seis meses depois, o caso de tortura contra Ismael Conceição por policiais da UPS continua impune. Um inquérito foi aberto no 6º Distrito Policial, mas até hoje não foi concluído. Já a Corregedoria da PM abriu um procedimento interno por entender que houve indícios de transgressão da disciplina por parte dos policiais. O inquérito foi encaminhado à Auditoria da Justiça Militar e continua em andamento.

Na última semana, Ismael foi convocado a prestar depoimento na Corregedoria e acabou passando por mais um trauma. Sem advogado, foi colocado frente a frente com seus torturadores. "Você toma tapa na cara de graça e eles estão aí, em liberdade. Eu espero que justiça seja feita e que eu consiga ficar em paz, porque não aguento mais", disse.

Depois de 3 de março de 2012, quando ocorreu a tortura, Ismael se mudou da capital e arrumou um novo emprego. Agora mora em uma cidade da região metropolitana com a namorada e tenta esquecer da sessão de espancamento, com direito a choques elétricos, a que foi submetido. Mas é difícil, principalmente, quando vê policiais. "O coração vai a mil. Eu passo muito mal. Minha mãe até fala que eles [os policiais] não vão fazer nada. Mas eu tenho medo, porque sei do que eles são capazes de fazer. Eu convivo com o medo diariamente", conta.

Bairro Alto

Em novembro de 2012, PMs que perseguiam um motociclista invadiram uma casa no Bairro Alto, em Curitiba, e agrediram uma família inteira. Entre as vítimas, um idoso e uma adolescente deficiente. Moradores se revoltaram com a violência e quatro deles acabaram presos e torturados. Um inquérito foi aberto e encaminhado à Justiça Militar, que arquivou o caso.

Caso Tayná

Quatro acusados pela morte da jovem Tayná Adriane Silva, de 14 anos, em Colombo, em julho deste ano, teriam confessado o crime mediante tortura na delegacia. O Gaeco investigou o caso e denunciou 21 pessoas à Justiça – a maioria policiais. A Vara Criminal de Colombo abriu processo penal contra 16 denunciados.

  • Cleomar mostra camisa rasgada e laudo que atesta a tortura

Os hematomas e feridas já desapareceram do corpo de Ismael Ferreira da Conceição, de 20 anos. Mas a sessão de tortura a que ele foi submetido um ano e meio atrás, por policiais militares da Unidade Paraná Seguro (UPS) do Uberaba, ainda assombra o rapaz. Ele evita sair de casa e entra em pânico simplesmente ao ver um agente fardado.

INFOGRÁFICO: Paraná é o quarto estado em número de denúncias

Levantamento da Se­cre­taria Nacional de Direitos Humanos (SDH) revela que, em média, seis denúncias de tortura como a de Ismael são feitas todos os meses no Paraná. Só nos cinco primeiros meses deste ano, a SDH recebeu 32 acusações oriundas do Paraná.

No país, os números assustam. Foram mais de 1,6 mil casos relatados no ano passado e 544 até o fim de maio de 2013. Boa parte se refere a torturas cometidas por policiais. Ainda assim, estima-se que o volume de torturados seja expressivamente maior, já que o medo silencia as vítimas e as instituições policiais tendem a ocultar os abusos.

"A tortura está institucionalizada entre as polícias. É um tratamento cultural, em que o policial pega o suspeito, já vai xingando, dando tapa na cabeça. E o que a gente consegue apurar é um número ínfimo em relação ao que de fato acontece, porque depende de a vítima tomar coragem e apresentar a denúncia", afirma o promotor André Pasternak Glitz, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco).

Provas

Na apuração dos casos, a principal dificuldade é comprovar tecnicamente que os abusos ocorreram. As lesões precisam ser documentadas por exames e laudos oficiais, feitos no Instituto Médico-Legal (IML). O problema é que o encaminhamento das vítimas a essas análises fica a cargo dos próprios torturadores.

"Muitas vezes, quando há a denúncia, os vestígios da tortura já desapareceram sem a vítima ter sido submetida ao exame. Fica a palavra dela contra a palavra do policial. Outras vezes, os agressores simplesmente se recusam a encaminhá-las ao IML ou, não raro, permanecem no local do exame, intimidando-as", diz o juiz Luciano Losekann, auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

A falta de materialidade se traduz em impunidade. Entre janeiro de 2011 e julho deste ano, o Gaeco de Curitiba instaurou 32 procedimentos para apurar denúncias de tortura. Apenas em sete deles se conseguiu elementos suficientes para encaminhar a denúncia à Justiça – entre eles, o caso Tayná, em que 16 pessoas (a maioria policiais) são alvo de processo penal pela tortura cometida contra quatro suspeitos do crime. Outros 17 casos acabaram arquivados por falta de provas.

"Como a tortura é praticada nos porões de nossas delegacias ou em locais ermos, raramente você vai ter uma testemunha ocular do fato. Então, sem a prova material, a chance de não haver denúncia é de 90%", lamenta Glitz.

Interrogatório sem advogado dá margem para excessos

Para as autoridades, a "precariedade" e a "defasagem" dos mecanismos de investigação – assentados no inquérito policial – deixam margem para que as torturas perpetradas por agentes públicos continuem a ocorrer. "Em muitos casos, a única prova é a confissão do suspeito. A confissão se torna um elemento fundamental para o sistema investigatório. Se o suspeito confessar, resolve o problema da polícia. Enquanto a gente tiver isso, as pessoas vão continuar apanhando para confessar crimes", avalia o promotor André Glitz, do Gaeco.

Além disso, um instrumento previsto no Código Penal potencializa a vulnerabilidade das vítimas. Trata-se de uma declaração que, assinada pelo suspeito, permite que ele seja ouvido sem a presença de um advogado. Longe dos olhos da lei, os excessos ocorrem.

"Muitas vezes, os suspeitos são obrigados a assinar, sem sequer saber o que estão assinando. Sem o defensor, são agredidos para dizer que cometeram determinados crimes", afirma a representante paranaense da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Isabel Mendes.

Prevenção

O juiz Luciano Losekann ressalta que uma medida simples para assegurar a legalidade nos procedimentos seria filmar os interrogatórios. "Mas o principal problema é que as Defensorias Públicas são incipientes no Brasil. É preciso assegurar ao preso o direito ao advogado", lembra.

Para o delegado-geral, Riad Farhat, chefe da Polícia Civil, a tortura ainda está presente nas forças de segurança, mas os casos estão mais raros. "Quando entrei na polícia, era mais corriqueira, mas hoje é mais pontual", diz.

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