
Indiciados pela Polícia Federal pelo crime de introdução ou ocultação clandestina de estrangeiro no país, 17 marinheiros muçulmanos rezam todos os dias em uma mesquita de Paranaguá, no litoral do estado. Acompanhados por dois marinheiros cristãos, eles rogam aos céus pelo fim de um pesadelo que já dura mais de 40 dias e os impede de voltar para casa. Membros da tripulação do navio Seref Kuru, de bandeira de Malta, os 19 homens 17 turcos e dois georgianos são investigados pelo Ministério Público Federal (MPF) por racismo, tortura e tentativa de homicídio em mar territorial brasileiro.
O MPF apura denúncia do camaronês Wilfred Happy Ondobo, 28 anos, encontrado à deriva no dia 27 de junho deste ano, agarrado a um pallet de madeira que flutuava amarrado a quatro galões plásticos. Ele foi resgatado pelo navio Marine R, de bandeira chilena, a 12 quilômetros da costa brasileira.
À polícia, Ondobo disse que foi agredido fisicamente, comparado a um animal por ser negro e abandonado no mar pelos homens que rezam na mesquita. Ele viajava clandestinamente no Seref Kuru. Na versão do camaronês, antes de baixá-lo ao mar, após quatro dias de agressões e tortura, os tripulantes do navio teriam entregado a ele 150 euros, 30 dólares e uma lanterna para que chegasse a nado ao Brasil.
Se condenados pelo conjunto de crimes, os tripulantes podem ser sentenciados a penas que variam de 8 a 34 anos de reclusão. Mas, se as preces forem atendidas, a condenação pode ser enquadrada no artigo 125, inciso XII, da Lei nº 6.815/80, conhecida como Lei de Estrangeiros. A pena, neste caso, é a expulsão do país, já que nenhum deles é brasileiro.
Desconhecimento
Até agora, apenas a versão do clandestino havia sido divulgada, com repercussão na imprensa nacional e internacional. Na última quinta-feira, a Gazeta do Povo conversou com os acusados com exclusividade. A entrevista, realizada no idioma nativo dos tripulantes, foi traduzida pelo escritor turco Eron Anar, que mora em Curitiba.
Hospedados em um hotel no centro histórico de Paranaguá, eles afirmaram que desconheciam a presença de Ondobo no navio. Coskun Çavdar, comandante do Seref Kuru, disse que antes de deixar o porto em Douala (Camarões) houve uma inspeção completa da embarcação e nenhum clandestino foi encontrado. Ele afirmou que a tripulação ficou surpresa ao saber das acusações. "Como podemos ser acusados por torturar e lançar um homem ao mar se nunca ele foi avistado por nenhum de nós?"
O marinheiro de convés Orhan Satilmis, único tripulante a ser apontado por Ondobo como autor de agressões físicas durante uma sessão de reconhecimento no navio, também negou as acusações. "Impossível agredir quem nunca vi."
Sobre a acusação de racismo, Çavdar preferiu não falar. Apenas exibiu fotos onde aparece abraçado a crianças negras na África. Ele também mostrou fotos da família do imediato do navio, Yildirim Zafer. A companheira de Zafer e seus enteados são negros. As fotos foram anexadas pelo advogado Giordano Vilarinho Reinert, responsável pela defesa dos tripulantes, ao inquérito da PF. "Confiamos na Justiça brasileira e temos certeza da nossa inocência", disse o comandante.
Vítima é suspeita de ser clandestino "profissional"
Hospedado em um hotel a menos de 30 metros de onde está a tripulação do Seref Kuru, Wilfred Ondobo se adaptou rapidamente ao Brasil. Já arrisca algumas frases em português, ensaia passos da música "Eu quero tchu, eu quero tcha" e se tornou amigo dos seguranças que o vigiam no hotel. Em seu perfil numa rede social, Ondobo postou uma foto em que aparece, ao lado de um segurança, mostrando as notas de euros e dólares supostamente entregues pelos marinheiros turcos.
Ele também mantém imagens de navios onde teria entrado como clandestino e fotos em que aparece nas ruas de Rosário, na Argentina. Em entrevista a uma emissora de televisão, o camaronês afirmou que já esteve na Argentina, Colômbia e países da Europa, viajando como clandestino. Em uma ficha de identificação preenchida na PF, Ondobo afirmou que no início deste ano esteve a bordo do navio tanque M/V Oriental Express, operado por um armador indiano.
Procurado, Ondobo não foi ouvido pela reportagem. Ele pediu R$ 100 para dar entrevista. Por uma questão ética, a Gazeta do Povo não paga para obter informação de nenhuma espécie, seja de forma direta ou indireta.
"Indústria"
Uma autoridade federal que atua no caso disse que existe uma "indústria da clandestinidade" envolvendo principalmente africanos, que se aproveitam da existência de seguros contra clandestinos para invadir navios e viajar pelo mundo. Quando descobertos, são hospedados em hotéis até a repatriação. Os gastos com estadia, alimentação e passagem aérea para o retorno são cobertos pela seguradora. Os destinos mais visados são países da América do Sul e da Europa.
Entre provas e mentiras, quem fala a verdade?
O reconhecimento de compartimentos do navio e o encontro de uma foto do clandestino pregada na parte inferior de uma pia são as principais provas que embasam a versão de Wilfred Ondobo, que diz ter embarcado no Seref Kuru em 16 de junho, em Douala, e lançado ao mar em 27 de junho. Eles disse à polícia que permaneceu oito dias escondido e, ao ser descoberto, foi aprisionado em uma cabine e agredido durante quatro dias. Ondobo disse que os tripulantes ofereceram a ele duas opções: chegar ao Brasil agarrado ao palet ou ser entregue à polícia. Mesmo tendo escolhido ser entregue aos policiais, foi forçado a descer ao mar.
Porém, depoimentos de testemunhas e do próprio Ondobo revelam que o clandestino mentiu em várias situações. O comandante do navio que recolheu o clandestino disse que ele afirmou "que ele estava em um barco pesqueiro que havia naufragado". O médico da Capitania dos Portos Aaron Reinert disse não ter encontrado sinais de agressão em Ondobo quando o atendeu no navio.






