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“Crossdresser”

Um senhor ambidestro e de dupla cidadania

Cartunista renomado, Laerte Coutinho desafia padrões e tabus ao ser homem e mulher ao mesmo tempo

“Eu me vestia de forma inconsciente. É o que a cultura dita masculina chama de modo prático. A gente pega a camiseta, bermuda e pronto.” Laerte Coutinho, cartunista e quadrinista | Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo
“Eu me vestia de forma inconsciente. É o que a cultura dita masculina chama de modo prático. A gente pega a camiseta, bermuda e pronto.” Laerte Coutinho, cartunista e quadrinista (Foto: Marcelo Andrade/ Gazeta do Povo)

"Chamo de ‘senhor’ ou ‘senhora’"? As unhas vermelhas, indefectíveis, brilham ainda mais quando Laerte dá de ombros, levanta as mãos e responde "pfff, tanto faz." Cultuado quadrinista e cartunista, colaborador da Folha de S. Paulo e criador da histórica tira Los Três Amigos, ao lado de Glauco e Angeli, o senhor Laerte Coutinho, 61 anos, atende também por senhora desde 2009, quando resolveu sair do armário vestindo roupas de mulher. O paulistano esteve em Curitiba na última semana para participar do seminário promovido pela Associação Brasileira de Transgêneros (Abrat), ONG da qual é cofundador e principal entusiasta. "Não temos nem CNPJ, mas já promovemos a circulação de ideias sobre esse tema tão fundamental", diz, cruzando as pernas enfiadas em uma meia calça roxa.

Os atuais debates em torno da transgeneridade e da transexualidade envolvem questões como saúde e segurança. "Queremos saber quantos somos, em que situação vivemos e como se dá o autorreconhecimento", explica o cartunista, antes de colocar os cabelos compridos e grisalhos para detrás do ombro.

Uma pessoa transgênera, ou crossdresser, é aquela cuja expressão de gênero – mulher, no caso do artista – não corresponde ao papel social atribuído ao seu gênero original – homem. Qual um cordeiro em pele de lobo. A descoberta dessa situação pode surgir acompanhada do que Laerte chama de "armarização". "Muitas pessoas transgêneras, quando se reconhecem nessa condição, veem também um crime, um pecado, uma doença, e se escondem. É dramático", diz ele/ela. Sua voz, um pouco anasalada, está mais para um senhor comedido do que para uma senhora recalcada.

A transgressão do padrão heteronormativo pode ser "clandestina", já que não aparece visualmente. É o caso dos gays. Mas a transgressão de gênero é visível e, segundo o artista, atinge uma área que é tabu para a cultura contemporânea. "A sociedade responde muito rápido por meio de agressões e do ridículo." Em 2010, a violência contra a população LGBTT deixou 34 mortos no Paraná, segundo dados da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.

60 anos no armário

Laerte começou a praticar o crossdressing em 2009, aos 58 anos. "Se eu estivesse no seu lugar, também perguntaria o que fiquei fazendo durante esses 60 anos", brinca. "É porque a transgeneridade é típica, íntima de cada um. É idiossincrática. Eu tento pensar na minha infância, mas são lembranças nebulosas. Eu gostava de algumas formas femininas, mas isso sempre se manifestava através de jogos e fantasias", explica o cartunista, que calçava sapatos vermelhos com feixes dourados.

Dicas sobre essa condição apareciam em suas tiras. Hugo, um dos personagens, começou a se travestir antes mesmo que seu criador. A primeira vez que a "senhora Laerte" apareceu foi no seu próprio quarto. "Começa com ações visíveis para você mesmo. Por exemplo, usar calcinha. E aí pintar a unha. Pintei e não quis mais tirar. Surgiu uma entrevista, apareceu esse assunto, e falei: ‘pode pôr’".

Fosse um personagem de uma tira de quadrinhos, Laerte seria complexo. Talvez confuso. Isso porque sua orientação sexual não necessariamente condiz com a maneira como aparece para o mundo. "São coisas que caminham paralelamente. Sou bissexual e tenho uma namorada desde 2004. Mas o principal de tudo é o modo como a gente se vê. Está tudo lá dentro", diz aquele que nem Freud explica.

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