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Vista uma roupa confortável, um tênis e reserve quatro horas e alguns minutos de sobra para ir ao Centro Velho de Curitiba. Leve uma lista de tarefas – que é para não esquecer de nada: forrar botões, comprar solado de sapato, abastecer a oficina com parafusos gigantes, aviar uns metros de corda, fazer bainha da calça e – na volta– adquirir um cartaz polonês na Rua XV. Se essa conversa lhe parece muito estranha, espere até botar o nariz na porta de alguns dos nove estabelecimentos selecionados para essa reportagem. Em sua maioria, eles são ou verdadeiros achados ou tão antigos quanto as pedras da calçada, raridades prestes a desaparecer. No dia em que isso acontecer, que pena, o Centrão vai estar muito perto do lugar-comum.

Há que se prestar atenção. Além de oferecerem serviços jurássicos, alguns desses estabelecimentos guardam a mesma pintura, lustres e piso dos tempos de vovó criancinha – em 1932, por exemplo, como na inacreditável Alfaiataria Curitiba. O local merecia ser tombado pelo Patrimônio Histórico ou transformado em Unidade de Interesse de Preservação, as UIPs. Mas ainda falta espaço para os pobres monumentos comerciais e industriais no mundo da memória. Por um simples motivo: ninguém pode obrigá-los a serem mantidos como são – exceto nas fachadas. É o caso da Casa Edith e da Papelaria João Haupt da Rua São Francisco, entre outros.

Pé na rua – comece a batalha pela Riachuelo e adjacências, com folga a área que mais concentra os últimos remanescentes do comércio antigo das araucárias. No Armarinhos Curitiba, em plena Travessa Tobias de Macedo, a "Travessa do Inferno", como se dizia, o encontro marcado é com Sandra Mara Nascimento, 30 anos, seis de balcão e uma especialidade que ela domina como poucos – a forração de botões. São 50 "forradas" por semana, para uma freguesia fiel, inclusive vinda dos municípios vizinhos, como Rio Branco do Sul, Itaperuçu ou Campo Largo. Como nem só de botão forrado vive o homem, Sandra também vende zíper em metro – até 100 metros, bem lembrado. E conserta zíper na peça, com preços de ocasião: R$ 1,50 e R$ 2,50. Claro, às vezes há problemas de comunicação. "Os catarinas dizem reco. E há quem ainda chame de feichecler", ilustra a gerente. Se é o seu caso, experimente fazer mímica.

Uma quadra abaixo, quando a Tobias já virou Travessa Alfredo Bufren, as portas da Casa de Couro Schlenker e Cia. Ltda. são um mimo urbano. O primeiro impulso é ficar olhando da calçada as malhas de couro e os moldes de sapato em madeira. O segundo é entrar e prosear. O terceiro é exigir que o proprietário, Harved J. Schlenker, 73 anos, escreva logo um livro sobre a saga dos seus antepassados. Em 1880, Otto, o pioneiro, apadrinhado por dom Pedro II, deu início ao comércio de couro na capital. De tão famoso, o rio da Itupava – perto do cortume – era chamado de Rio dos Schlenker. No início da década de 50, Harved assumiu a loja do Centro e ali permanece, como manda o figurino. "Por puro prazer", repete, quase em coro com os outros comerciantes à moda antiga. Ninguém se orgulha dos rendimentos atuais. E ninguém quer deixar de fazer o de sempre. Sem alarde, por favor.

Pelo menos é o que pede outro veterano, Malek Nader, 62 anos, que atua no mesmo ponto comercial – a Casa Alumínio, na Galeria Andrade – desde 1966. "Foi o Rafael Greca quem inventou esse negócio de turismo", diz, sem muita paciência, diante do impacto que sua loja provoca nos passantes. Tivesse lingüiças e queijos pendurados, seria um legítimo armazém da Pré-História curitibana. "Minha freguesia é 30% poloneses, 30% italianos e 30% alemães", calcula Nader, para quem não há concorrência à vista. Sempre vai haver alguém precisando de chapas de fogão a lenha (R$ 193), tábua de passar roupa (R$ 9,80) ou um bule esmaltado (R$ 50). No mais, há quem passe para conversar com o balconista Pedro Petroski, 83 anos, 53 de batente na Alumínio, um espetáculo de simpatia. Deveria ser criado o medidor Petroski de juventude. Metade da cidade ia remoçar.

Osvaldo Matter, 79 anos, atende na Alfaiataria Curitibana, no melhor ponto da Rua Riachuelo, há tanto ou mais tempo que Pedro Petroski. O negócio foi iniciado por seu pai, o paisagista Guilherme Matter, em 1932, para costurar roupas para o Exército, sob as bênçãos do general Heitor Borges de Oliveira. No final da década de 60, o ramo deu sinais de cansaço, mas os Matter fizeram de conta que não era com eles e não deram meia-volta volver. "Até os cupins já se mandaram", dispara Osvaldo. "Poxa, hoje em dia, até a Alpargatas vende coturnos. Mas não vamos mudar de rumo. Só não me peçam para organizar a loja." Matter está certo – a desordem, ali, soma. Além do mais, vestir-se à moda da caserna tem seu charme e há quem saia dali, vejam só, a cara do Che Guevara. Vamos deixar a alfaiataria em paz.

Depois de passar pela Loja Marisa da XV e dar uma espiada num dos melhores exemplares do déco paranaense; encomendar um cartaz polonês com o único fornecedor da redondeza, o polono-curitibano Edinelson Domahovski; comprar artesanato na Loja da Provopar e comprar vinis com Ivone de Lima, na Galeria do Comércio, é hora de conferir mais um estabelecimento com direito a "atestado de antiguidade". Trata-se da Alfaiataria Saldanha, há quatro décadas posto de trabalho dos amigos Orestes José Pesch e Rafael Handocha, ambos com 66 anos e nenhuma rusga para manchar uma amizade iniciada na infância, passada nos Campos Gerais. "Não somos cachorro para brigar, né!", avisam. O ambiente é perfeito: modelos para costurar paletós, um rádio caixotão, mesa grande de madeira pesada, um sofrido arquivo de metal e o retrato gigantesto do papa João Paulo II – superando qualquer abismo entre poloneses e ucranianos, etnia da qual a dupla descente até o último fio de cabelo.

"Tinha de escolher entre ser sapateiro ou lavrador. Achei melhor ser alfaiate", diz Rafael, 50 anos de profissão, legítimo garoto-propaganda dos ternos "mandado fazer". Se aparecer por lá, experimente chegar de paletó comprado. Conversa vai, conversa vem, o dueto se apruma e aponta as costuras ordinárias, a falta de tecido por dentro e o caimento de molambo. Que penúria! Dá até vergonha de sair vestindo aquilo pela Saldanha, rua que depois de conhecer Rafael e Orestes, fica parecendo velhinha em folha.

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