
Sempre cabe um prato a mais na mesa de Maria de Paula Rosa. A porta da casa fica aberta para filhos, netos, parentes e amigos. "E para quem mais chegar de boa vontade", diz a senhora de 75 anos. Até os cães sem dono que perambulam nas ruas estreitas da Vila Nossa Senhora da Luz têm guarida no cantinho em que dona Maria se dedica diariamente a cuidar da família. "Acho que na vida, para a gente ser feliz, tem que dar todo dia um pouquinho de amor e carinho para quem a gente gosta", filosofa.
"Curitibana" há 46 anos, a paraibana de nascimento criou a família na vila, o primeiro conjunto habitacional de Curitiba, na Cidade Industrial. Criou, não. Continua criando. Seu netinho mais novo, Kauã, de três anos, se recupera de uma cirurgia. Por isso tem passado as tardes com a avó e não na creche municipal, a duas quadras de casa.
Nessa mesma creche, o outro neto, Moisés, hoje com 13 anos, aprendeu a ler. E, nas praças da vizinhança, deu os primeiros chutes numa bola. O menino leva tanto jeito que já foi à Espanha com a escolinha de futebol da comunidade. De olho no futuro, a família o incentivou a estudar espanhol num curso ofertado pela escola municipal da vila.
Dona Maria agradece a Deus pelos serviços públicos estarem perto de sua casa e funcionarem "relativamente bem". E também comemora porque os quatro filhos "um de criação" estão empregados. O trabalho e o suporte governamental dão conforto para a doméstica curtir a família da qual ela é o grande esteio. "Nossa vida é assim: todo mundo perto, todo mundo junto."
Apego
O apego à família é uma característica de todos os brasileiros. E também faz parte da alma do curitibano. Enquete feita com 410 moradores de todas as regiões de Curitiba pelo Instituto Paraná Pesquisas, a pedido da Gazeta do Povo, mostra que o curitibano é antes de mais nada um "sujeito familiar". O principal sonho pessoal dos habitantes da cidade, citado por 17,3% dos entrevistados, pode ser resumido numa frase: ver a família feliz (veja infográfico).
Ajudar os curitibanos a realizar esse anseio será um dos desafios do futuro prefeito de Curitiba. Pois, se a forma como cada família busca a felicidade é assunto particular, o Estado (e a prefeitura em particular) tem a obrigação de prover as condições mínimas para isso. E, principalmente, tem de dar suporte quando uma família ou algum de seus integrantes passa por situações de risco social.
A vida familiar atravessa uma série de estágios e transições previsíveis: a gestação, o nascimento, a infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Cada etapa desse ciclo apresenta riscos.
As três esferas de poder (federal, estadual e municipal) têm o dever legal de promover políticas públicas que evitem ou solucionem os dilemas dessas fases. A Constituição Federal contempla os direitos à vida em família. Há também a Lei Orgânica de Assistência Social (Loas) que determina "a primazia da responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social em cada esfera de governo".
"Não é nenhuma ajuda ou favor estatal; é um dever constitucional da administração pública de garantir esses direitos fundamentais com políticas públicas", afirma Daraci Rosa dos Santos, do Conselho Regional de Serviço Social do Paraná (Cress-PR).
Política nacional
Para atender as famílias em situações de risco, o governo federal instituiu em 2004 o Sistema Único de Assistência Social (Suas).
A Gazeta do Povo ouviu especialistas que concordam que esse sistema tem muitas virtudes, mas que ainda não conseguiu ser devidamente implantado em Curitiba por causa do baixo investimento municipal na área.
"A política pública municipal tem um lógica equivocada", diz Rodrigo Navarro, mestre em educação e profissional com história de serviços sociais no terceiro setor. "Uma grande parte dos investimentos é direcionada para obras de infraestrutura, que beneficiam as pessoas que têm carro. O município precisa olhar com mais ênfase para as famílias de baixa renda."
Adolescentes e idosos correm mais riscos
Cada fase da vida familiar tem suas próprias situações críticas e de risco que exigem políticas públicas. Mas, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo, há duas etapas que exigem uma atuação mais incisiva e permanente: a adolescência e a terceira idade.
No caso dos adolescentes, as maiores preocupações dizem respeito à segurança pública, à prevenção contra o uso de drogas, ao tratamento dos casos de dependência química, à recuperação de jovens infratores e à capacitação para o trabalho.
Para o educador Rodrigo Navarro, todas as configurações familiares precisariam estar amparadas por uma política de prevenção da violação de direitos fundamentais, como o acesso à educação. "Quando o adolescente vai para situação de risco [deixa de estudar ou se envolve com a criminalidade, por exemplo] é porque a família foi privada do acesso aos bens e direitos. Isso ocorre especialmente com famílias que vivem na periferia da cidade", afirma ele.
Navarro explica que a demanda por assistência social para a juventude é muito maior do que a capacidade dos serviços ofertados pela prefeitura por meio dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e dos Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
A assistente social Daraci Rosa dos Santos chama a atenção para o fato de que Curitiba tem apenas um único programa para adolescentes aprendizes, cujo trabalho de capacitação profissional é feito por uma ONG que abre vagas apenas duas vezes por ano para atender toda a cidade. A prefeitura mantém convênio com algumas empresas para contratar esses adolescentes mas elas podem recusá-los se quiseram. "São poucas empresas para absorver esses jovens e poucas vagas para capacitação", afirma a assistente social.
Daraci critica ainda o processo de seleção dos adolescentes, que está "descontextualizado" da realidade dos jovens. "Às vezes, exigem deles condições como aparência ou domínio de idioma ou de informática", diz. Exigências que, justamente por estarem em situação de risco, os adolescentes não conseguem cumprir.
Terceira idade
Outro desafio para os futuros gestores públicos é o aumento da expectativa de vida da população. Isso vai gerar uma inevitável demanda de serviços de assistência para idosos. Uma exigência para a qual Curitiba ainda não está se preparando adequadamente, na avaliação da freira Anete Giordani, integrante do Conselho Municipal dos Direitos dos Idosos. "As equipes de saúde [específicas para a terceira idade] existem, mas há uma carência imensa de profissionais", afirma.
O presidente da Comissão dos Direitos do Idoso da OAB-PR, Cornélio Capaverde, afirma que a família é o ambiente ideal para as pessoas mais velhas ficarem. Mas, diante da vida moderna, muitos filhos adultos que trabalham não têm como cuidar dos pais idosos durante o horário de trabalho. Nesse caso, diz ele, o correto é haja um local onde ele possa passar o dia, para depois retornar ao lar. E que sejam públicos se a família não tem condições de pagar.
A legislação municipal já prevê esse tipo de atendimento e criou os "centros-dia" um espaço público de convivência para a terceira idade. Porém, Curitiba dispõe de apenas um centro-dia público, que fica no Asilo São Vicente de Paula, no Juvevê.
A coordenadora do Centro de Apoio às Promotorias de Proteção aos Direitos do Idoso do Ministério Público do Paraná, Rosana Bevervanço, diz ainda que é necessário pensar em outros investimentos públicos para a terceira idade: a acessibilidade das calçadas, sem obstáculos; a reinserção do idoso no mercado de trabalho se ele desejar; formas alternativas de abrigo de idosos. "Existem muitos idosos para poucos cuidadores capacitados. Tem que ser uma pessoa preparada, não alguém sem conhecimento, pois pode acontecer negligência, abandono, violência", diz Rosana.
Colaborou Mariana Scoz.



