
Aguardando votação no Congresso Nacional desde maio do ano passado, o projeto do governo federal que cria a Comissão da Verdade que vai apurar a história da repressão durante a ditadura militar continua longe de ser unanimidade. Militantes contra o regime militar e setores das Forças Armadas divergem sobre vários pontos da proposta, entre eles quem deve fazer parte da comissão e se o grupo terá poder de apontar culpados e pedir providências à Justiça em relação a casos, por exemplo, de tortura situações que foram anistiadas no país. Na tentativa de pressionar os parlamentares a alterar o texto original do projeto, comitês locais estão sendo criados em todo o Brasil, inclusive no Paraná. O objetivo deles é claro: garantir que os crimes cometidos entre 1964-1985 não sejam encobertos mais uma vez.Nos bastidores, o Executivo vem se articulando para aprovar a proposta no Congresso o quanto antes, evitando que o texto sofra alterações e provoque ainda mais desgaste político. A presidente Dilma Rousseff, que foi presa e torturada durante a ditadura militar, tem interesse especial na aprovação do projeto, uma vez que foi ela a idealizadora da matéria quando chefiava a Casa Civil no governo Lula em seu discurso de posse, ela disse não ter ressentimentos e rancores da época.
Para garantir que antes da votação no Congresso a matéria passe por um amplo debate, 18 comitês estaduais estão se articulando para discutir meios de mostrar à sociedade a importância de trazer à tona os acontecimentos do regime militar. A intenção é repetir a estratégia utilizada no período final da ditadura, quando a pressão dos opositores forçou o governo a promulgar a Lei da Anistia, em 1979.
Resgate da história
Coordenador do Comitê Paranaense pela Verdade, pela Memória e pela Justiça, Narciso Pires foi torturado, sequestrado e preso por seis vezes durante a ditadura militar. A acusação contra ele, que foi obrigado a viver na clandestinidade a partir de 1970, era de tentar reorganizar o Partido Comunista Brasileiro no Paraná. "Desvendar esse processo histórico é uma responsabilidade do conjunto da sociedade. Foi assim em todo o mundo, inclusive na América Latina, e tem de ser assim no Brasil", defende.
Um dos pontos do texto mais criticado por Pires diz respeito à impossibilidade de punição a torturadores que forem desvendados a partir dos depoimentos que serão colhidos pela comissão a medida foi uma forma encontrada pelo governo para esfriar o ânimo dos militares, que veem o mecanismo como retaliação. O tema divide inclusive o meio jurídico uma vez que, apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter decidido em 2008 que a Lei da Anistia impede julgamentos de atos praticados durante o regime militar, convenções internacionais ratificadas pelo Brasil determinam a punição de pessoas que cometeram crimes de lesa-humanidade, considerados imprescritíveis.
"Tortura não é um crime político, mas um crime comum e contra a humanidade. Eles cometeram crimes inclusive pela ótica da ditadura, que não tinha nenhuma legislação que garantia a tortura como método investigativo", afirma Pires. "Por que no Brasil tem de ser diferente, se em todo o mundo os torturadores cumprem pena e estão na cadeia?"
Pires afirma ainda que o STF mentiu e errou de forma grosseira ao referendar a Lei da Anistia sob o argumento de que tudo foi feito a partir de "negociação com a sociedade". "O argumento de que a Lei da Anistia foi negociada com a oposição é mentiroso. Todos nós militamos na época e jamais fomos consultados", critica. "Além disso, enquanto todos os militares foram de fato anistiados, apenas 17 dos 56 presos políticos à época foram beneficiados pela lei. A maioria deixou a prisão por cumprimento de pena." Para ele, isso mostra que é inaceitável a postura dos militares de exigir que a Comissão da Verdade também investigue eventuais crimes cometidos por opositores à ditadura.
Sem revanchismo
Um dos principais argumentos de representantes das Forças Armadas para desqualificar a Comissão da Verdade é de que o sentimento de revanche move os defensores da criação do grupo.
Pires rebate esse posicionamento e afirma que os perseguidos pela ditadura querem que os militares sejam processados judicialmente, dentro do processo legal e democrático. "Revanchismo seria se nós quiséssemos que os torturadores passassem pelas mesmas torturas que nós sofremos. Tudo que queremos é zelar pelos direitos humanos", argumenta.
De acordo com o grupo Tortura Nunca Mais, fundado em 1985 por ex-presos políticos do regime militar, 136 militantes continuam desaparecidos e outros 298 foram mortos pela ditadura.
Procurados pela reportagem, representantes e entidades ligadas às Forças Armadas não quiseram comentar o assunto.



