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Conversas ao pé da base

Participação popular cresce na capital, mas traz perigos como lideranças ilícitas e uso politiqueiro das comunidades

O sociólogo Ramon Gusso: participação popular não funciona na base do “eu sozinho” | Valterci Santos/Gazeta do Povo
O sociólogo Ramon Gusso: participação popular não funciona na base do “eu sozinho” (Foto: Valterci Santos/Gazeta do Povo)
Veja algumas características do cidadão participante |

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Veja algumas características do cidadão participante

Confira o crescimento das associações de moradores nas regionais |

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Confira o crescimento das associações de moradores nas regionais

A contar pelos números, a capital do Paraná vive um surto de participação popular. Os dados são superlativos. Levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc), no primeiro semestre deste ano, registra nada menos do que 900 associações, entre clubes de mães, de terceira idade, times de futebol e, principalmente, entidades de bairro. Sozinhas, as chamadas "associações de moradores" respondem por quase 30% do total de grupos em atividade na cidade.

Só essas informações bastariam para pôr em descrédito o mito do curitibano recluso. Numa conta por alto, feita em parceria com consultores de organizações não-governamentais, estima-se que 1,2 mil ONGs atuem na cidade, envolvendo cerca de 8 mil profissionais. A população atingida pelo terceiro setor é um enigma. Só o "complexo Dignidade", formado por seis ONGs, atingiu apenas no primeiro semestre deste ano 11,4 mil pessoas.

Também na linha "salvação da lavoura" segue a Fundação de Ação Social, a FAS. Ao lado da Secretaria Municipal de Habitação, a Cohab-CT, é o órgão público mais próximo das comunidades, das associações de bairro e daquela Curitiba que não renderia um slogan para turista ver. Sua atuação em nada se parece à aquela imagem pálida do assistência social do passado. São 1,6 mil funcionários e 44,2 mil mil famílias atendidas, o que permite afirmar um servidor do Centro de Referência em Assistência Social (Cras) enxerga mais da cidade do que todo o contingente do Palácio 29 de Março.

É preciso pôr na conta, ainda, um outro fenômeno popular – o das consultas públicas feitas pela atual gestão da prefeitura, de 2005 para cá. Foram 235 audiências, 40 delas em bairros, gerando 18 mil sugestões. Segundo Michele (leia-se Miquele) Caputo, 46 anos, secretário municipal exonerado de Assuntos Estratégicos e um dos atuais coordenadores da campanha de Beto Richa, os encontros em bairros e regionais nunca tiveram menos de 800 participantes – incluindo as áreas de classe média, erradamente tomadas por menos associativas. Só as feitas em bairros atingiram 40 mil pessoas. Não à toa, as audiências se tornaram uma das bandeiras da reeleição. "Na próxima gestão, é um dos primeiros projetos que vamos retomar", anuncia Caputo.

A Curitiba militante e engajada é de fato uma imagem redentora. Pior do que ter um milhão de carros é ter a população presa a caverna dos apartamentos, condomínios e shoppings. Mas hoje a realidade do movimento social reflete muito pouco a imagem romântica dos anos 60 ou as greves do ABC paulista. Seu perfil é de um pragmatismo cruel. Basta lembrar do personagem Juvenal Antena, vivido por Antônio Fagundes na novela Duas Caras, tão popular no Brasil de hoje como foi um dia o Odorico Paraguaçu de Paulo Gracindo, em O Bem Amado.

O poder público que no passado abandonou as comunidades agora tem de cumprir a cerimônia do beija-mão aos líderes comunitários. É a licença para passar asfalto ou abrir uma unidade de saúde. Não é regra – ressalte-se: há inúmeras comunidades exemplares, como a do Bolsão Sabará, a da Vila São Pedro e setores da Vila das Torres, para citar três. Mas nos locais em que as lideranças agem de forma autoritária e politiqueira, a situação beira o absurdo.

Os especialistas chamam esse processo de "cooptação". De um lado os governos se apropriam das comunidades, vias lideranças. De outro, as comunidades domesticam os governos, no melhor do estilo antropofágico.

Às falas

"As audiências públicas se transformaram em minicomícios, uma oportunidade para elite do planejamento urbano de Curitiba se desfazer da imagem de conservadora. É ecologicamente correto, sabe. Mas o planejamento da cidade foi todo feito sem participação popular", alfineta o advogado Vinícius Gessolo, da Terra de Direitos, ONG que presta assessoria aos movimentos sociais.

Gessolo não está dando tiro para o alto. O número de participantes e de sugestões dadas pela população não transformam as audiências em sucursais da Basílica de Aparecida. Há de fato várias ciladas a desviar: uma delas é o mero efeito cosmético das audiências. A outra, mais grave, é sua utilização politiqueira. Basta ter um CNPJ para representar milhares de pessoas. Nesse bolo, há quem represente a si mesmo. E quem represente o próprio poder municipal – particularmente os diretores de regionais.

Não se sabe, por exemplo, quantos participantes de audiências são funcionários públicos ou pessoas comprometidas com a secretaria de governo. Em áreas, como a da saúde, é muito comum que o participantes representem interesses de categoria. Ao todo, são mais de 50 conselhos municipais. Resta saber se são de fato populares ou extensões de repartições. "A audiência é boa. Mas o povo se vê jogado lá, sem muita certeza da aplicação do que está sendo falado. Só dá certo se a população for capacitada", reforça Vinícius.

Para não cair nessa esparrela, o advogado da Terra de Direitos sugere que as comunidades exijam regulamentação das audiências. É preciso saber de antemão se os encontros têm valor deliberativo, vinculante. Tem de exigir também divulgação satisfatória e prazo para receber respostas sobre a aplicação ou não das sugestões. Sem isso, diz, a participação tende, inclusive, a diminuir.

Michele Caputo afirma que todos esses itens foram cumpridos nas audiências. "Cada casa da regional recebia convite. O processo nunca é oficialista. Jamais levamos gente de ônibus, por exemplo. Há bairro que não via a cara do prefeito havia 20 anos. Não virou Atletiba. Foi bom. É irreversível", diz.

Ainda assim, há mais um passo a dar – é preciso transformar a participação popular num exercício verdadeiramente democrático. O cientista social Ramon Gusso, 28 anos, da Cooperativa Ambients – voltada para projetos de ecologia urbana – estuda o movimento popular nas grandes cidades e observa uma particularidade dos anos 2000: é cada vez mais comum a presença do bloco do "eu sozinho".

"A pauta das reuniões não nasce de uma discussão. O participante representa seu id, ego e superego, mas não mais um grupo social", brinca. Ou seja, muitas audiências e movimentos correm o risco de se tornar uma aglomeração de indivíduos, cada um com sua plataforma, o que a longo prazo leva à desistência de participar. Ou palanque para interesses de líderes de associações sem reconhecimento das comunidades – um risco que o próprio Caputo reconhece existir. "A gente se pergunta a quem de fato certas pessoas representam."

O modelo ideal, diz o estudioso, é aquele em que não há apenas sugestões, mas discussões, estudos de viabilidade, pressão dos grupos e compromisso dos participantes – modelo que as ONGs sabem desenvolver como poucos. "O primeiro passo é saber qual é o pacto que os participantes têm", sugere Ramon. Está dada a largada.

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