
O arquiteto Key Imaguire mora há 33 anos no bairro das Mercês. Numa rua onde, não há muito tempo, seus filhos jogavam futebol e brincavam de esconde-esconde com os colegas da vizinhança. Porém, como acontece com as crianças, Curitiba também cresceu. A antes tranquila rua hoje é parte do anel viário do bairro. A pequena pracinha com playground no fim da via foi aberta para facilitar o fluxo de carros.
Foi uma opção política que divide a população local. Há quem aprove a melhoria do trânsito. Há quem sinta falta da antiga tranquilidade. "Os meus netos estão sendo criados trancados", lamenta Imaguire. Mas o próprio arquiteto, que é daqueles que sempre buscam ver o lado bom das coisas, pondera: "Ou têm de ser levados aos parques o que permite socialização com crianças de origem diferente".
Imaguire é um dos muitos curitibanos que sente falta de uma Curitiba que só existe na memória. "Por mim, a cidade ficaria no tempo em que já tinha os privilégios de uma cidade grande, mas não tinha os prejuízos de forma tão clara."
Tranquilidade perdida
O arquiteto não está só. Uma enquete feita em julho pelo Instituto Paraná Pesquisas, a pedido da Gazeta do Povo, ouviu 410 moradores de todas as regiões da cidade. Quase metade dos entrevistados (47%) disse que sente falta da tranquilidade perdida; de uma cidade com crianças brincando nas ruas, trânsito melhor e menos violência. Em outra pergunta, 45% dos curitibanos disseram que a Curitiba que sonham teria mais segurança e menos congestionamentos um outro indicativo de que os moradores desejam uma capital, ao menos em alguns aspectos, à moda antiga.
Essa constatação coloca o futuro prefeito diante de um desafio de difícil resolução: como devolver a tranquilidade à população em uma cidade que não para de crescer? Que políticas públicas podem ser implantadas para atender a esse anseio sem frear o desenvolvimento de Curitiba?
Olga Firkowski, professora do Departamento de Geografia da UFPR e coordenadora do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, diz que será preciso muita criatividade para superar o dilema. "Não vamos mais voltar ao passado. Mas a sociedade e o poder público podem amenizar essa carência."
Para ela, a simples inibição do uso dos carros poderia devolver em parte a tranquilidade à cidade. "Poderíamos ter uma rede de estacionamentos com preços não comerciais perto dos terminais de ônibus para evitar que os carros cheguem ao Centro", sugere.
Refúgios
Outra aposta seria preservar e incentivar o uso de espaços e cenários, ainda existentes, que remetem o morador à tranquilidade da natureza, à calmaria das cidades pequenas e à Curitiba do passado. Esses locais funcionariam como "refúgios" da agitação. Os parques, em certa medida, já cumprem essa função ao manter o verde na cidade. Novas unidades de conservação poderiam ser implantadas.
Paisagens coloniais no meio da cidade também têm potencial. Segundo dados da Secretaria Municipal do Meio Ambiente, 23 dos 75 bairros da capital ainda têm áreas rurais. São locais como o Umbará e a Barreirinha, onde ainda há quem faça compras em armazéns de secos e molhados.
O cineasta Luciano Coelho, autor de um curta-metragem sobre os velhos armazéns de Curitiba, diz que esses estabelecimentos comerciais criam uma sensação de tranquilidade urbana, pois fazem as pessoas conviverem. "O contato que existia entre os donos de armazéns e o público era quase familiar. O tipo de comércio que os substituiu não favorece o contato humano", lamenta.
Mas mesmo em espaços movimentados é possível "desacelerar". O presidente do Conselho de Arquitetura de Urbanismo do Paraná, Jeferson Dantas Navolar, diz que o calçadão da Rua XV de Novembro é um exemplo disso: "Tira-se o carro, equipa-se o local público e cria-se um cenário que dá valor histórico ao espaço", diz ele. Para Navolar, apesar do fluxo intenso de pessoas, o calçadão virou um refúgio de tranquilidade para os pedestres no meio do Centro de Curitiba.
Curitibano não tolera o barulho
A Curitiba dos sonhos de seus habitantes também é muito mais silenciosa do que a cidade real em que vivem. Saudosos da tranquilidade provinciana, os curitibanos são cotidianamente golpeados por barulhos como alarmes que disparam de madrugada, festas de arromba e noitadas decibélicas, carros "tunados" prestes a explodir em graves e médios, entre outros alaridos. Algo que uma parte expressiva dos moradores da cidade, em geral, não tolera.
"O curitibano preserva o silêncio. Temos ainda uma tradição de repressão e timidez, mesmo que isso esteja mudando", diz o jornalista e escritor Luís Henrique Pellanda, que mora no Centro e "coleciona" em suas crônicas os barulhos ouvidos de tiros na boca do lixo ao coral de Natal do Palácio Avenida.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente confirma o apego do curitibano ao sossego. O chefe da divisão de fiscalização da secretaria, Luiz Fernando Laska, diz que 30 denúncias sobre excesso de som chegam ao órgão, em média, todos os dias por meio do telefone 156 o canal de comunicação da prefeitura com os cidadãos.
As estatísticas da Central de Atendimento da PM também são um bom termômetro ou "decibilômetro" do sonho curitibano de ter paz sonora. O barulho é o principal motivo de reclamação dos moradores para a PM nos fins de semana. Cerca de metade das chamadas telefônicas recebidas aos sábados e domingos é para pedir providência em casos de perturbação do sossego.
A coordenadora estadual dos Conselhos Comunitários de Segurança (Consegs), Michelle Lourenço Cabral, alerta que o barulho na cidade é prejudicial inclusive para o combate à criminalidade, pois parte do efetivo da PM se desloca para as ocorrências de perturbação do sossego em detrimento de outras situações mais graves. "Não se trata de caso de polícia, mas de falta de educação. É preciso um pouco mais de consciência das próprias pessoas para aprender a respeitar mais seus vizinhos", diz Michelle.
Sem políticas
Apesar de Curitiba ter lei específica para coibir o barulho, faltam investimentos públicos para garantir o sossego. "Nos países do Terceiro Mundo não há uma política de prevenção da poluição sonora mesmo em uma cidade como Curitiba, considerada um exemplo de urbanização", diz o professor Paulo Henrique Trombetta Zannin, do Laboratório de Acústica Ambiental da UFPR.
Zannin coordenou um estudo que comparou os níveis de ruído na cidade em 1992 e no ano 2000. A pesquisa constatou que Curitiba ficou menos barulhenta no período. No primeiro ano avaliado, os limites sonoros foram ultrapassados em 93,4% dos locais monitorados. Oito anos depois, 80,6% dos pontos tiveram som acima do limite. Segundo o pesquisador, isso foi fruto principalmente da instalação de radares e da consequente redução do limite de velocidade dos automóveis.
Mas, inversamente ao que os dados mostravam, o curitibano ainda estava insatisfeito. Pesquisadores do grupo de Zannin entrevistaram moradores da cidade e descobriram que a sensação deles é de que o ruído aumentou. Os curitibanos ainda culparam o barulho por dores de cabeça, insônia e irritação, entre outros desconfortos. Os vizinhos e o trânsito, para os entrevistados, são os principais causadores do barulho.
Fatores negativosTrânsito e segurança são os principais vilões da tranquilidade
Um dos vilões do ideal de cidade tranquila é a mobilidade urbana. A coordenadora do Núcleo de Psicologia do Trânsito da UFPR, Iara Thielen, diz que tanto a prefeitura como os próprios cidadãos têm responsabilidade sobre o assunto.
"Até que ponto o cidadão que tem saudade do trânsito tranquilo não é ele um dos responsáveis pelo problema?", questiona a psicóloga. A opção pelo transporte individual é, afinal, a principal causa dos congestionamentos. Mas Iara alerta que, no caso de Curitiba, a atuação do poder público tem caminhado na direção do incentivo ao uso do carro e vai na contramão de qualquer desejo da população de tornar o espaço urbano mais tranquilo.
Essa opção, que subverte a tradição curitibana de privilegiar o transporte coletivo, vem se verificando com a abertura de vias para facilitar o deslocamento de automóveis. A prefeitura inclusive tem vários projetos para abrir cruzamentos hoje fechados por ruas sem saída. Em alguns casos, essa vias são verdadeiras ilhas de tranquilidade.
No Alto da Glória, alterações recentes em sentidos de ruas causaram grande polêmica. "O bairro como o conhecíamos não existe mais; está virando uma autopista. O fetiche pelo carro, infelizmente, se transferiu para a agenda política", critica o ilustrador e designer Guilherme Caldas.
Ele e outros moradores estão prontos para organizar uma "resistência" caso a prefeitura queira levar a cabo a ideia de transformar a pracinha que une quatro ruas em uma via de tráfego rápido. Morador da região há 72 anos, Odilon Nauck é um dos que estão na bronca: "[A abertura da rua] cria um transtorno, acaba com a nossa tranquilidade e não resolve o problema".
Iluminação
Outro "vilão" da tranquilidade é a falta de segurança pública. A prefeitura não dispõe do aparato policial para coibir a criminalidade. Mas tem a Guarda Municipal. E pode atuar na prevenção: garantir iluminação nas ruas, instalar câmeras de segurança em locais movimentados e fazer investimentos sociais, culturais e esportivos em áreas de risco.







