
Abalada pelo julgamento do mensalão e por outras decisões judiciais recentes, a relação entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) caminha para um ambiente de "guerra fria". Enquanto não houver uma última definição sobre as condenações dos quatro deputados federais envolvidos no escândalo do mensalão, ambos os lados vão evitar um confronto institucional aberto. Enquanto isso, os conflitos de bastidores continuam.
Os primeiros sinais da nova fase começaram com as mudanças de posicionamento do recém-eleito presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN). Durante a campanha pelo cargo e logo depois de vencer, ele reiterou que a declaração sobre a perda de mandato é uma atribuição "inequívoca" do Legislativo. Na última quarta-feira, no entanto, após uma visita ao presidente do STF, Joaquim Barbosa, afirmou que não havia "possibilidade de confrontar uma decisão do Supremo" em dezembro do ano passado a corte determinou que os parlamentares condenados no mensalão perdem o mandato automaticamente, sem necessidade de deliberação da Câmara.
Em vez de selar a trégua entre os dois poderes, a declaração de Alves mantém dúvidas. "Nós vamos fazer aquilo que o nosso regimento determina: finalizar o processo. Coisas de formalidade legal e ponto", disse ele. O alcance dessas "formalidades" não está claro: se decidir seguir o artigo 55 da Constituição, a cassação vai depender de uma votação secreta em plenário (veja mais detalhes no infográfico).
Outra manobra para ficar com a palavra final sobre as cassações seria a criação de uma nova corregedoria, independente da Mesa Diretora. O órgão avaliaria os processos e denúncias na Justiça que envolvem parlamentares. Caberia à corregedoria, que seria formada por cinco membros, dar um parecer posterior ao do STF sobre os mandatos dos condenados o que poderia postergar as cassações.
As discussões sobre a criação da corregedoria foram confirmadas pelo segundo vice-presidente da Câmara, Fábio Faria (PSD-RN). Em entrevista à Gazeta do Povo no mês passado, o primeiro vice-presidente, o paranaense André Vargas (PT), também defendeu que condenados a penas em regime aberto (inferior a quatro anos) têm condições de exercer o mandato.
Dos quatro deputados condenados no processo do mensalão, José Genoino (PT-SP), Pedro Henry (PP-MT) e Valdemar Costa Neto (PR-SP) receberam penas compatíveis com regime semiaberto, enquanto João Paulo Cunha (PT-SP), em regime fechado. As punições podem ser reduzidas a partir do julgamento de recursos, que devem se estender até o segundo semestre.
Outros atritos
Até lá, outros temas devem chocar Legislativo e Judiciário. O primeiro são as novas regras de distribuição do Fundo de Participação dos Estados (FPE). O método atual foi considerado inconstitucional em 2010 pelo STF, que estipulou um prazo até dezembro de 2012 para que novas normas fossem aprovadas pelo Congresso Nacional. A determinação, no entanto, não foi cumprida e, no mês passado, o ministro Ricardo Lewandowski concedeu liminar parcial que manteve a vigência das regras atuais por 150 dias.
Outro assunto pendente é a votação dos cerca de 3 mil vetos presidenciais pelo Congresso. Em dezembro, o ministro Luiz Fux suspendeu, também em caráter liminar, a votação do veto da presidente Dilma Rousseff que tratava da redistribuição dos royalties de petróleo. Os dois temas serão prioridades da pauta do parlamento a partir do dia 19, quando serão retomadas as votações.
Especialistas não creem em ruptura
Embora as rusgas entre o Congresso e o STF sobre os mandatos dos condenados no mensalão sejam públicas, o conflito institucional entre os poderes só se tornaria um fato concreto a partir do momento em que a Câmara Federal permitisse que os parlamentares sentenciados continuassem exercendo suas funções após o trânsito em julgado do processo.
"Os dirigentes da Câmara não podem se negar a descumprir uma decisão judicial. Seria um crime claro de desobediência, que é um tipo penal", diz o professor de Direito Constitucional da Universidade de Brasília Paulo Blair.
Por outro lado, ele avalia que a deflagração de uma crise institucional nesse patamar "é possível, mas improvável". "A meu ver, está muito claro que os dois poderes vão chegar a um acordo. Como a Câmara vai ignorar o fato de que os deputados condenados vão cumprir pena? É fisicamente impossível exercer o mandato de dentro de uma cadeia."
Complexidade
Deputado federal e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, o deputado paranaense Osmar Serraglio (PMDB) é a favor da decisão do STF sobre a perda automática de mandato dos condenados, mas ressalta que a discussão é complexa. "É só lembrar que a decisão do STF foi apertada, por cinco votos a quatro", diz o parlamentar.
Serraglio avalia que, após a reunião entre Henrique Eduardo Alves e Joaquim Barbosa, o debate vai arrefecer por alguns meses, mas vai voltar à tona com o desfecho dos julgamentos dos recursos dos condenados. "Estamos falando, acima de tudo, de uma briga que envolve a opinião pública."
Na avaliação do doutor em Ciência Política pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) Antônio Octávio Cintra, a crise gira em torno de um problema de redação constitucional. "A Constituição abriu uma margem de interpretação muito estranha nesse caso. Ao mesmo tempo em que dá ao STF o papel de fazer o julgamento dos deputados, deixa uma brecha para que a decisão definitiva dependa da Câmara. E qual seria o papel da Câmara: fazer um novo julgamento?", questiona.
Assim como Blair, Cintra não acredita no descumprimento da decisão do Supremo. "Todas as declarações nesse sentido foram destinadas ao público interno, no calor de uma disputa pela presidência da Câmara", diz o cientista político. "É o tipo de situação comum em qualquer Estado democrático. A democracia, na verdade, não pacifica os conflitos; apenas permite que eles sejam visíveis", complementa Blair.



