
A bancada evangélica do Congresso ainda não digeriu a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de permitir a interrupção da gravidez em casos de anencefalia quando não ocorre a formação do cérebro no feto. Graças a uma articulação dos parlamentares do grupo, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou nesta semana uma proposta de emenda à Constituição Federal (PEC) que permite ao Congresso sustar decisões do Judiciário. Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo classificaram o projeto como esdrúxulo e inconstitucional.
Hoje, o Legislativo só pode mudar atos do Executivo. A PEC do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), porém, dá competência ao Congresso para sustar "atos normativos dos outros poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". Além de resoluções de tribunais e atos de conselhos, há parlamentares que entendem ser possível sustar decisões do STF com repercussão geral e até súmulas vinculantes. Se a regra já estivesse em vigor, haveria chance, por exemplo, de o Congresso reverter a permissão de interromper a gravidez nos casos de fetos anencéfalos.
Inconstitucional
Para o jurista René Dotti, é "repugnante" apresentar uma proposta como essa motivada pela "perseguição religiosa". Ele defende que, no caso dos fetos anencéfalos, o Supremo não legislou, mas decidiu como se houvesse o caso concreto de mulheres que tenham gestação nessas condições e fizeram o aborto. "A PEC claramente vai contra a autonomia que tem de haver entre os poderes e está garantida na Constituição. Não pode haver poder superior ao outro", argumenta. "Trata-se de uma lei que nasce morta, porque é inconstitucional.."
A mesma análise é feita pelo também jurista Luís Roberto Barroso. Segundo ele, a medida viola o princípio de separação entre os poderes, ao subordinar a eficácia das decisões do Judiciário à previa aprovação do Legislativo. Além disso, Barroso afirma que, no Brasil, não vigora o modelo parlamentarista, adotado, por exemplo, na França e na Inglaterra, onde o Parlamento dá a última palavra em interpretação da Constituição.
"Aqui, vive-se a supremacia da Constituição e não do Parlamento. Portanto, quem diz qual o sentido da Constituição é o Supremo", explica. "A PEC estabelece uma subversão tão grande da estrutura constitucional que exigiria a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte para ser feita. Certamente, o STF terá de declará-la inconstitucional, se for aprovada."
Queda de braço
Dotti vai além e critica essa tentativa de conflito entre o Legislativo e o Judiciário. "É esdrúxula essa aparente declaração de guerra entre os dois poderes. A última instância para decidir sobre a constitucionalidade de uma lei é o STF", analisa.
"Se for aprovada uma emenda dessa natureza, iriam criar uma tensão política muito grande e indesejável entre os poderes", completa Barroso.



