
Membros do Judiciário e do Ministério Público têm o dever de cumprir e defender a Constituição Federal no exercício de suas funções. Diante das previsões legais e das expectativas da sociedade, surge o questionamento sobre até que ponto as exigências para o exercício da função devem interferir nas vidas que esses operadores do direito levam fora de tribunais e gabinetes. Um exemplo recente, de um procurador que foi afastado por uma postagem que fez em uma rede social, leva ao debate sobre como separar a vida pessoal do cidadão da figura do agente público.
Em setembro de 2013, o procurador do Ministério Público Federal Davy Lincoln Rocha, que atua no Ministério Público Federal em Joinville (SC), postou em sua página pessoal do Facebook um texto que ele intitulou como "Carta aberta às forças armadas brasileiras" (leia trecho do texto ao lado). Na postagem, ele se diz decepcionado com os militares brasileiros, que teriam salvado o país do comunismo e da "baderna generalizada" em 1964, e questiona porquê, agora, "assistem calados, tímidos, de cabeça baixa, o Brasil dominado por um simulacro de Democracia".
Nas declarações feitas na rede social, Lincoln não se refere a seu cargo público, apresenta-se somente como "cidadão brasileiro". Ainda assim, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) decidiu instaurar um processo administrativo disciplinar e afastar Rocha de suas funções.
O conselheiro do CNMP Luiz Moreira, que fez a recomendação para a instauração do processo administrativo contra Rocha, prefere não falar sobre esse caso especificamente, mas observa que o membro do MP deve "guardar decoro e não pode ter conduta escandalosa ou vexatória". Ele ressalta também que cabe ao MP "zelar pela ordem jurídica e pelo regime democrático". Por isso, no entendimento do conselheiro, um membro do órgão pode criticar o governo, por exemplo, mas não pode incitar crimes.
O artigo 4.º do Código de Ética do MP determina que seus membros devem ter uma conduta compatível com a Constituição "notadamente no que se refere aos deveres gerais de probidade, lealdade à Instituição, decoro pessoal, urbanidade, impessoalidade, eficiência e publicidade" e prevê que os padrões éticos são exigidos também na vida privada, "de modo a prevenir eventuais conflitos de interesses". A Lei Orgânica da Magistratura (Loman) prevê, no artigo 35, inciso VIII, que os magistrados "devem manter conduta irrepreensível na vida pública e particular". E o Código de Ética da Magistratura diz, no artigo 16, que "o magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos cidadãos em geral".
Equilíbrio
O desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná e professor de direito empresarial do Unicuritiba Luiz Osório Moraes Panza considera que o Brasil está em um patamar de democracia em que qualquer pessoa que exerça qualquer função pública pode manifestar sua opinião. Por outro lado, ele observa que, cabe aos magistrados e membros do MP, diante do poder-dever que detêm, procurar ter cuidado com as palavras que usam.
O relator do caso de Rocha no CNMP, conselheiro Antônio Duarte, também prefere não se pronunciar sobre este processo específico, mas diz que o plenário do Conselho tem compreendido em sua maioria que "o membro do MP tem que ter uma postura responsável quando se manifesta publicamente e não pode esquecer que está em uma instituição defensora do Estado de Direito".
Defender opinião não é crime, diz especialista
Fazer distinção entre a exigência de uma conduta na vida condizente com a função que o magistrado ou membro do MP exerce e tolher sua liberdade de expressão são coisas que precisam ser separadas, na opinião do professor de direito constitucional da FGV-Rio Ivar Hartmann.
O constitucionalista observa que conselhos como o CNMP e o CNJ têm autoridade para punir um membro por atos que cometam em sua vida pessoal, como dirigir embriagados, por exemplo. "Ainda que [o agente público] não tenha pretendido representar a instituição ao fazer algo incompatível com sua função, é possível aplicar punições." Por outro lado, Hartmann considera errado punir alguém por algo que ele tenha dito como cidadão.
Ao afastar um procurador que fez elogios ao regime militar, por exemplo, o CNMP considerou que ele faltou com o decoro e pode ter cometido crime contra a ordem democrática.
O professor da FGV afirma ser completamente contra discursos pró-ditadura, mas diz que a liberdade do sujeito não pode ser afetada. Para Hartmann, o STF já decidiu sobre isso quando deliberou sobre a marcha da maconha: ainda que a incitação ao uso da droga seja ilícita, as pessoas que defendem mudança na lei têm o direito de se expressar.



