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 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Apesar de manter, em casa e no escritório, uma grandiosa biblioteca com mais de 7 mil volumes, o professor e advogado René Ariel Dotti parece não precisar mais consultar as informações impressas nas páginas dos livros. Ele mesmo é uma enciclopédia: cita datas, nomes, casos e leis como se estivessem todos cunhados em sua mente. Esse conhecimento, adquirido em mais de 50 anos de profissão, também é transmitido aos novos advogados com o re­cém-formado Centro de Estudos Professor Dotti. "Pretendo deixar uma espécie de testamento, uma lembrança viva daquilo que produzi durante os anos", diz o professor nesta entrevista ao Justiça & Direito. Ele revela também que não foi um dos melhores alunos da faculdade e que o direito penal surgiu por acaso em sua vida. "Estudei mais direito civil", conta. Para Dotti, o futuro do direito só será garantido com o aperfeiçoamento dos direitos humanos. E ele pretende participar desse futuro, trabalhando. A aposentadoria não faz parte dos planos do advogado e professor conhecido e reconhecido por sua contribuição profissional para a advocacia diária e representativa do Brasil.

Quando o senhor entrou na faculdade de Direito, imaginava que teria essa importância para a história do Brasil e do estado?

Não, porque durante o curso eu não fui dos melhores alunos, não tinha as melhores notas, mesmo porque eu estava muito envolvido com o teatro na época. A advocacia criminal surgiu na minha vida por um acidente. Estudei mais direito civil na faculdade. Um dia, logo depois de formado, um professor de direito penal me solicitou que eu atendesse uma causa dele no tribunal. A partir de então, passei a admirar muito o direito criminal porque revela um lado muito grande da humanidade e que está em harmonia com a minha personalidade. Mas eu não imaginava que teria as oportunidades que tive e o aproveitamento delas no futuro da minha carreira para ser um representante dos advogados. Em 2007, recebi da Câmara dos Deputados uma medalha de mérito legislativo pela colaboração que prestei ao longo dos anos para o Ministério da Justiça na reformulação de leis. Tive também a satisfação de receber dos advogados uma medalha característica de Santo Inácio, padroeiro dos advogados, e também fui eleito para o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Em suma, me sinto plenamente realizado na advocacia, não só na advocacia diária, mas também na representativa. E tenho recomendado a todos que tenham vocação que não tenham receio. Há pouco tempo, em São Paulo, depois de uma palestra, um advogado recém-formado me disse que estava advogando há cinco anos, mas estava tudo muito difícil e me pediu um conselho. Eu disse a ele: "Quantos restaurantes há em São Paulo? Quantas lanchonetes?", ele estranhou a pergunta, e continuei: "São muitas lanchonetes e inúmeros restaurantes, como há inúmeros escritórios de advocacia, mas todos estão vivendo. O importante é você desenvolver um trabalho de que você goste, por que você tenha amor, porque, tendo amor à profissão, você será feliz. Não é possível ser feliz sem amor a profissão".

Quais as diferenças da sua geração de advogados para as turmas que têm vindo agora?

Nós, no tempo da faculdade, ainda usávamos gravata no curso de direito. Esta geração é completamente distinta, muito dinâmica e atuante. Para ser um bom professor, inclusive, é preciso pensar muito na tecnologia da informação e estar em dia com as conquistas da informação. É uma geração muito dinâmica, principalmente, em função das possibilidades abertas com a liberdade da informação. Tenho a convicção de que não haveria movimentos contra a ditadura no Egito e na Líbia se não houvesse internet. A informação e a comunicação foram as grandes armas pacíficas que determinaram aquelas revoluções civis que depuseram os regimes.

O senhor possui grande atuação na questão da liberdade de informação e de imprensa. Qual a importância disso para o senhor?

Lembro-me do pensamento do grande estadista norte-americano George Washington, que disse que, se ele tivesse que escolher entre um governo sem jornais e jornais sem governo, preferiria a última hipótese. A liberdade é fundamental, não só em uma democracia, mas para o desenvolvimento do ser humano. A liberdade de informação e de imprensa é fundamental para que as pessoas possam ter acesso aos três direitos: o direito de informar, que é exercido pelo comunicador; o direito de o cidadão ser informado por um meio de comunicação; e o direito de o cidadão procurar a informação também. De modo que a censura é um atraso muito grande porque mutila não só as liberdades políticas e sociais, como também as liberdades de espírito, na medida em que censura a arte, a poesia, o drama, o teatro. No conflito que há entre liberdade de informação e proteção da personalidade, deve prevalecer a liberdade de informação quando se trata de informar fatos de interesse público.

Isso tem caminhado em sentido contrário no Brasil?

Há tentativas que se manifestaram nos últimos anos, inclusive por orientação do governo federal, que pretende implantar o chamado Marco Regulatório da Imprensa, o que seria uma simulação para esconder a máscara da censura. Não é possível, nas circunstâncias atuais e com a cultura política do Brasil, estabelecer um marco regulatório. A imprensa deve ser livre e deve se evitar a censura prévia. Quem se julgar ofendido pode procurar o Judiciário para defender seu interesse posteriormente.

Um caso de grande repercussão na mídia é o mensalão. Como o senhor vê o encaminhamento desse julgamento?

Foi, sem dúvida, o maior escândalo que a justiça criminal do país pôde detectar. Como disse o ministro Celso de Mello, uma verdadeira quadrilha se apoderou dos instrumentos e dos meios de governo para corromper deputados para votar em favor de projetos de interesse do próprio governo. [O caso] ganhou notoriedade nacional, o Supremo Tribunal Federal desenvolveu um trabalho de extraordinária profundidade no exame do processo e teve uma atuação exemplar. [Quanto aos embargos infringentes] a matéria era muito controvertida, com argumentos de parte a parte. Acreditava que houvesse a rejeição dos embargos, atendendo à finalidade da lei, que deve atender ao interesse social. No caso do mensalão, os réus tiveram ampla defesa e não se justificava o recurso, porque esse tipo de recurso é cabível a um órgão superior, mas neste caso o Supremo é o órgão máximo. Devemos respeitar essa decisão e, como advogado, devo assim proceder.

Outro assunto recorrente na imprensa é a discussão da idade penal no Brasil. O que o senhor defende nesse sentido?

Penso que o Estatuto da Criança e do Adolescente poderia receber uma modificação, aumentando o prazo máximo de internamento de três para seis anos nos casos mais graves, como homicídio e latrocínio, mesmo que o menor complete a maioridade. Mas deve-se manter o limite da capacidade penal em 18 anos. Não me parece adequado que, com 17 ou 16 anos, o menor deva ser colocado em um ambiente altamente corruptor como o das penitenciárias. Não é razoável baixar o limite de idade, porque, senão, a partir de então, teremos um movimento para se baixar mais esse limite. O exemplo de outros países, como Inglaterra e Estados Unidos, não é oportuno para nós.

Como o senhor vê o futuro do Direito?

Vejo o futuro do direito com um aperfeiçoamento dos direitos humanos, que sempre deve regular as relações de direito, do ponto de vista criminal, civil, administrativo, de família. Em uma de suas últimas conferências no início deste século, perguntaram a Norberto Bobbio [filósofo político italiano] como ele via o novo século diante das guerras cada vez maiores, dos instrumentos mais poderosos de destruição, da degradação do meio ambiente, e ele disse que havia esperança. Nas reuniões e congressos internacionais, tenho visto muito o progresso dos direitos humanos. Para mim, o direito do futuro deverá se espelhar nos direitos humanos. Mas o que são os direitos humanos? Não são aqueles inerentes só aos perseguidos políticos e acusados criminais. Os direitos humanos, como diz a Declaração Universal do Homem, da assembleia da ONU [Organização das Nações Unidas], de 1948, são direitos sociais, culturais, intelectuais, de participar do governo, de felicidade, ao pleno emprego, entre outros. Então, na medida em que o direito do futuro reconhecer esses direitos fundamentais, teremos um bom direito, que deverá ser caracterizado em um Estado Democrático de Direito, um Estado sem ditaduras.

E se alguém dissesse para o senhor que não tem seus direitos garantidos, o que o senhor falaria para essa pessoa?

Em primeiro lugar, procuraria saber se ela tem os direitos e lutaria por ela. Também atendemos as pessoas que, embora tenham direito, mas, não tendo possibilidade financeira, precisam de uma defesa. É terrível a pessoa ter um direito e infelizmente não ter condições de poder ver esse direito defendido.

A justiça ainda é injusta com os mais pobres?

É injusta, porque ainda não temos desenvolvida a defensoria pública do estado. Não temos ainda profissionais do estado para promover a defesa dos marginalizados e pessoas carentes, embora a Constituição preveja que eles devem ter direito a defesa pública por parte do próprio Estado.

O Centro de Estudos Professor Dotti é uma forma de o senhor deixar esse conhecimento?

Pretendo deixar uma espécie de testamento, uma lembrança viva daquilo que produzi durante os anos. O centro de estudos reunirá não apenas estudos de direito criminal, mas também de direito de família, administrativo, constitucional e outros e servirá também para palestras que defendam os direitos humanos, os direitos das pessoas mais humildes. O instituto deve ter uma dimensão fortemente humana, não técnica, e deve lutar em favor de quem é oprimido pelo Estado. Esta é minha grande preocupação. Também tenho procurado estimular os mais jovens neste curso de aperfeiçoamento em prática de advocacia criminal que estamos coordenando. É um curso gratuito, para advogados e alunos do quinto ano de Direito, e o ingresso é mediante concurso. Às quartas-feiras, inclusive, promovo reuniões, que chamo de consultório forense, no qual os alunos levam os casos em que têm dúvida e trocamos ideias de como resolvê-los. Isso tem me realizado muito porque entendo que, além do trabalho profissional, devo deixar uma contribuição importante para os jovens advogados.

O senhor se vê aposentado do Direito?

Não. Quando me perguntam se eu ainda advogo, digo que nunca parei. E [se me perguntam] se eu ainda estou lecionando, digo que enquanto eu viver. Este é meu lema: enquanto eu viver e nunca parei.Assista ao vídeo em que o professor René Dotti conta histórias vividas durante a ditadura militar e explica sua relação com o teatro.

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