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 | Andre Rodriguez/ Gazeta do Povo
| Foto: Andre Rodriguez/ Gazeta do Povo

Por não ter enfrentado um conflito com mais de 60 milhões de mortos, como foi a Segunda Guerra Mundial, o Brasil não consegue evoluir na sua integração. Assim pensa o jurista português Fausto Quadros que, para exemplificar essa dificuldade, cita a falta de integração entre os próprios países que fazem parte do Mercosul. Nesta entrevista à Gazeta do Povo, Quadros aponta ainda os desafios jurídicos europeus diante da crise econômica que atinge o continente e a necessidade de aplicar reformas ao Estado português. "Como não foi racionalmente pensado, o Estado está desordenado", acredita. Em visita a Curitiba, o jurista confessa que tem "medo" de usar algumas palavras do vocabulário comum em Portugal por aqui e diz que fica admirado com as combinações gastronômicas brasileiras, como o mousse de papaia com cassis.

Quais os desafios jurídicos europeus diante da crise econômica?

A crise é de toda a Europa na medida em que a situação da Grécia pode prejudicar a união econômica e monetária europeia. Da parte de Portugal, estamos cumprindo o acordado. No ano passado, a União Europeia propôs um tratado orçamentário europeu, e Portugal foi um dos Estados que aceitou. Agora, a Comissão Europeia, o Banco Central e o Tribunal de Justiça da União Europeia têm poderes mais estritos no controle da disciplina bancária, orçamentária e financeira dos Estados-membros da Zona do Euro. Portugal está recuperando a confiança dos mercados e dos credores internacionais, embora haja sacrifícios para os cidadãos. No plano da União Europeia, é preciso fazer reformas e, no plano dos Estados-membros, estão todos fazendo.

O senhor afirmou, em um seminário recente, que Portugal precisa passar por uma reforma de Estado. Por quê?

Deve haver uma definição do papel que o Estado deve desempenhar na sociedade moderna. Desde que a ditadura caiu, a Assembleia Constituinte portuguesa nunca discutiu que Estado deveria substituir o Estado corporativo. E houve uma acumulação de tarefas atribuídas ao Estado pela ideologia dos deputados. Portanto, vivemos todos em um erro. Os cidadãos pedem cada vez mais ao Estado, não se dando conta de que, para atender a essas reivindicações, é preciso aumentar os impostos. Como não foi racionalmente pensado, o Estado está desordenado. A reforma é necessária para saber o que o Estado tem de fazer, o que pode fazer em colaboração ou concorrência com os privados e o que ele não deve fazer ou pode ser feito pelos particulares.

O senhor afirma que uma das mudanças necessárias seria no montante da justiça: ter menos leis e leis melhores...

Recentemente, presidi uma comissão que está elaborando três leis básicas para Portugal. Uma delas é o Código de Procedimento Administrativo, que não existe no Brasil, o que é uma pena. É uma lei básica que diz como a administração pública deve funcionar, como deve lidar com os particulares, sem corrupção, com transparência, rapidez e colaboração. Além disso, a comissão está elaborando mais um estatuto e outro código que vão inaugurar uma nova justiça administrativa no país. Essa justiça tem de ser rápida, justa e não deve ser cara. Essas leis são importantes para formar uma nova justiça administrativa.

Como o senhor vê o ordenamento jurídico do Brasil? Com relação aos procedimentos administrativos, existe a necessidade de reformas?

Não vou dar conselhos ao Brasil. Mas, por alguma razão, todos os países desenvolvidos possuem um código de procedimento administrativo e o Brasil também poderia ter. Esse código pouparia tempo, dinheiro e permitiria ao Estado viver em um regime de colaboração com os particulares. O senhor também atuou como árbitro no Mercosul. Quais são os desafios?

Todos. Na União Europeia não temos passaportes, câmbios, nem filas quando mudamos de Estado. Ir de Lisboa a Paris é como ir do Rio de Janeiro a São Paulo. Para vender, também é assim. Para as empresas, isso significa mais dinheiro, celeridade e melhor prestação de serviços. Talvez por causa da Segunda Guerra, tínhamos que limitar as soberanias na Europa. No Mercosul não querem limitar essas soberanias. Não há zona de livre comércio, união aduaneira, monetária ou política. O Mercosul mais forte e mais unido é fundamental para a paz no mundo e na América Latina, que é um continente conturbado. O Brasil ficaria muito evidente com um Mercosul que não fosse apenas trocar chocolate por biscoitos ou frangos por tratores. Mas não há vontade política para isso, não há aquele "empurrão" que a Europa teve para evitar a terceira guerra mundial.

Falando um pouco de ditadura: no Brasil, tivemos recentemente a implantação da Comissão Nacional da Verdade. Como o senhor avalia a transição democrática portuguesa?

Em Portugal e na Espanha houve o desejo de ajustar contas com a ditadura. Mas isso já saiu de moda. A democracia deve ter generosidade de não pensar eternamente na ditadura, ela deve pensar em construir-se por ela própria. O futuro não se faz com passado, se faz com futuro. Enterramos os machados de guerra e pensamos que uma das formas de construir esse futuro é esquecer a ditadura.

O senhor já veio várias vezes ao Brasil. O que tem sentido de diferente no país nos últimos anos?

Sinto uma grande maturidade no Brasil, que está crescendo muito. Está crescendo com muita desigualdade, mas, com 180 milhões de habitantes, o processo é mesmo difícil. Sinto-me em casa, pois falamos a mesma língua, converso com pessoas brilhantes, distintas, educadas e civilizadas. O Brasil está evoluindo, mas precisa avançar na sua integração, até porque possui um papel decisivo por ser uma grande potência emergente. Não podemos pensar em uma globalização dos mercados selvagens. Precisamos lutar por uma globalização em que a pessoa humana seja o centro e não o objeto dos mercados.

Quando o senhor vem para cá, qual a maior diferença cultural que o senhor sente?

Tenho receio de empregar palavras que possuem outra conotação aqui [risos]. No Rio Grande do Sul, há muitos anos, me disseram que lá havia muitas pessoas com ascendência "polaca", mas me avisaram que eu não deveria chamá-las assim, porque soa­ria pejorativo. Ou a palavra "rapariga", que, para nós, é algo normal e aqui não se pode dizer. Também fico preocupado quando dizem que a criminalidade tem aumentado em várias cidades do Brasil. Em um país tão grande, isso é inevitável. Mas é preciso evitar que se crie um sentimento de insegurança, porque isso cria inúmeros problemas.

E do que o senhor mais gosta no Brasil?

De muita coisa. Gosto de um bom Guaraná, do chope, da praia, das frutas, da gastronomia. Hoje comi um mousse de papaia com cassis, uma coisa maravilhosa.

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