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Flanelinhas & cia.: se for um problema, só as leis bastam para resolvê-lo?

Egon Bockmann Moreira, advogado, doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da UFPR, professor visitante nas Universidades de Coimbra e de Lisboa (Portugal) e nas Universidades de Nankai e JiLin (China)

Recentemente, foi divulgado que vários municípios do estado do Paraná editaram leis proibidoras dos "flanelinhas" e equivalentes. Com isso, pretende-se impedir qualquer indivíduo de "guardar" os carros que estacionam em vias públicas. Por exemplo, na cidade de Ponta Grossa, no mês de setembro, foi sancionada a Lei 11.101, que, ao mesmo tempo em que torna "proibida a atividade de guardadores de veículos denominada ‘flanelinhas’, ou semelhantes, nos logradouros públicos" (artigo 1º), assegura que só o poder público municipal pode cobrar pelo "estacionamento de veículos nos logradouros públicos" (artigo 2º). Em decorrência desta proibição, a Lei determinou que a Guarda Municipal fiscalize e impeça tais atividades, podendo "remover" as pessoas que se encontrarem nessa situação para encaminhá-las à Polícia Militar e/ou Civil, a fim de que "procedam ao enquadramento" da conduta nesses tipos penais: "a) exercício ilegal de profissão ou atividade; b) extorsão; c) constrangimento ilegal; d) estelionato e ou; e) usurpação de função pública" (artigo 4º).

Ao que tudo indica, a escolha legislativa é simples de ser compreendida: os "guardadores" de veículos são um problema que deve ser "removido", pois se presume que estejam, independentemente de sua conduta real, cometendo crimes (devem, por isto mesmo, ser obrigatoriamente "enquadrados"). Como se pode perceber, esta "presunção de culpabilidade", por si só, já torna a lei bastante complicada: afinal, ninguém mais tem a inocência resguardada – até prova em contrário, todos são culpados. O princípio constitucional da presunção de inocência foi deixado de lado, não vale nas calçadas municipais. Este juízo pré-condenatório tem gosto, cheiro e cor de regimes de exceção. Porém, há mais.

Isto porque, desde 1975, existe uma lei federal que criou a "profissão de guardador e lavador autônomo de veículos automotores" (Lei 6.242/75, regulamentada pelo Decreto 79.797/77). Nos termos do decreto, o guardador "atuará em áreas externas públicas, destinadas a estacionamentos, competindo-lhe orientar ou efetuar o encostamento e desencostamento de veículos nas vagas existentes, predeterminadas ou marcadas" (artigo 3º). Ao seu tempo, o lavador "atuará em áreas externas públicas, destinadas a estacionamento, onde for autorizada lavagem de veículos, competindo-lhe a limpeza externa e interna do veículo, por meio de água e outros produtos autorizados pelo proprietário do veículo" (artigo 4º). Em ambos os casos, o exercício regular da profissão depende apenas de registro na respectiva Delegacia Regional do Trabalho.

Logo, para além do problema da constitucionalidade do diploma municipal, existe um conflito interfederativo de leis: a federal, a criar e regulamentar a profissão dos "guardadores"; a municipal, a proibir e criminalizar tal atividade. Assim e paradoxalmente, a lei positivada no regime militar tentou criar uma profissão e regulamentá-la; enquanto que a atual busca consolidar o juízo de que se é "flanelinha", trata-se de um criminoso. Porém, esta constatação é quase tão absurda quanto a de que o legislador brasileiro vem, há mais de 35 anos, se preocupando com isso.

Afinal de contas, todos estes diplomas seguiram a tramitação normal das leis: proposta, análise e pareceres, debates, votação e aprovação no legislativo, para posterior sanção do executivo. Custam o tempo dos legisladores (e de seus assessores) e dinheiro dos contribuintes. Tempo e dinheiro gastos não para implementar políticas públicas de inserção social, que porventura buscassem resolver o problema (se é que ele existe), mas, sim, para burocratizar e controlar uma atividade, no caso federal, ou penalizá-la, no caso municipal. O que permite a seguinte reflexão: será que tais leis servem para alguma coisa? Ou melhor: será que as leis, por si sós, solucionam a questão? A experiência demonstra que não: afinal, desde 1975 existe a profissão regulamentada – que, ao que se infere pela edição das recentes leis criminalizadoras, nada resolveu.

Seria por demais ingênuo, portanto, supor que basta a edição de leis para resolver qualquer problema social. Talvez editar leis seja mais fácil do que efetuar levantamentos, pesquisar as causas dos eventuais problemas e propor políticas públicas emancipatórias – sempre de longo prazo. Mas fato é que o Direito, felizmente, não faz mágicas. Necessário se faz muito mais do que a mera promulgação de leis: é o que se espera dos poderes constituídos.

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