HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. ANÁLISE DOS ELEMENTOS CONSTANTES NO ACÓRDÃO RECORRIDO. REEXAME DE MATERIAL FÁTICO/PROBATÓRIO. AUSÊNCIA. DOLO EVENTUAL x CULPA CONSCIENTE. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL DO JÚRI. RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE PRONÚNCIA
1. O restabelecimento do decisum que remeteu o agravante à Júri Popular não demanda reexame do material fático/probatório dos autos, mas mera revaloração dos elementos utilizados na apreciação dos fatos pelo Tribunal local e pelo Juiz de primeiro grau.
2. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de indícios de sua autoria, não se demandando aqueles requisitos de certeza necessários à prolação de um édito condenatório, sendo que, nessa fase processual, as questões resolvem-se a favor da sociedade.
3. Afirmar se o Réu agiu com dolo eventual ou culpa consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do conjunto fático/probatório produzido no âmbito do devido processo legal.
4. Na hipótese, tendo a provisional indicado a existência de crime doloso contra a vida embriaguez ao volante, excesso de velocidade e condução do veículo na contramão de direção, sem proceder à qualquer juízo de valor acerca da sua motivação, é caso de submeter o Réu ao Tribunal do Júri.
5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença de pronúncia.(REsp 1.279.458-MG, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 4/9/2012.)
AnáliseO limite cognitivo da pronúncia
A decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) está em consonância com a jurisprudência histórica das cortes brasileiras. Contudo, esta racionalidade arcaica necessita ser questionada.
De acordo com o artigo 413 do Código de Processo Penal (CPP), o magistrado deve pronunciar o acusado quando se convencer da existência do crime e de indícios suficientes de que o acusado é o seu autor. Assim, no caso em comento, em que a defesa alega se tratar de homicídio culposo e a acusação de dolo eventual, o STJ decidiu que a questão deverá ser dirimida pela Corte Popular, uma vez que além de estarem presentes os requisitos mínimos (autoria e materialidade), aqui vigoraria o princípio do in dubio pro societate.
Destarte, necessita-se refletir sobre dois tópicos: (1) a competência do Tribunal do Júri somente se estabelece em casos de crimes dolosos contra a vida teor do artigo 5º, XXXVIII, d, da Constituição Federal, o qual, ademais, alça a instituição do Júri ao patamar de garantia fundamental; e (2) a insistente aplicação do nefasto princípio do in dubio pro societate.
(1) Afirmar, como o STJ, que para a sentença de pronúncia bastaria a presença da materialidade e indícios de autoria é olvidar matéria prévia de ordem de competência. O Júri somente será o juiz natural do processo quando se tratar de crime doloso contra a vida. Desta sorte, caso os elementos probatórios apontem para ocorrência de homicídio culposo, a competência não será do Tribunal do Júri e, sim, do juiz singular.
(2) Esta racionalidade de não adentrar na análise da culpa consciente ou do dolo eventual com o intuito de evitar que se suprima a competência do juiz natural é agravada pela utilização do inconstitucional princípio do in dubio pro societate na sentença de pronúncia. Em oposição ao milenar princípio do in dubio pro reo ou favor rei, utiliza-se uma aberração jurídica criada para retirar a responsabilidade do juiz togado e remeter casos dúbios ao exame popular.
O in dubio pro reo é uma garantia constitucional e deve ser empregado incondicionalmente em todos os processos e fases judiciais. Não se trata de um princípio geral abstrato, mas, sim, de um princípio presente de maneira expressa e interpretativa em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, na Constituição de 1988 e no Código de Processo Penal.
Não há razões para que se continue a adotar, hodiernamente, decisões que propalem o sórdido in dubio pro societate. Aplicá-lo é o mesmo que afirmar que, em nosso sistema processual, há o princípio in dubio contra reum, ou seja, mesmo a acusação não tendo êxito em comprovar sua tese, ainda, sim, permite-se que um acusado seja condenado.
Urge entender que a função da decisão de pronúncia é a de evitar que um cidadão que não deva ser condenado possa sê-lo em razão de um julgamento soberano, não fundamentado e que decide de forma íntima.
Apesar de vertentes contrárias, num Estado verdadeiramente Democrático de Direito, garantias e direitos individuais devem ser salvaguardados em toda e qualquer fase ou decisão judicial.
Rodrigo Faucz Pereira e Silva, advogado criminalista, mestre em Direito, professor de Direito Penal e da Clínica de Tribunal do Júri da UniBrasil.



