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Direito português

O jurista dos vinhedos

José Gomes Canotilho, jurista

 | Daniel Castellano/ Gazeta do Povo
(Foto: Daniel Castellano/ Gazeta do Povo)
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Quando as aulas de uma turma de doutorado terminam, José Gomes Canotilho leva seus alunos para conhecerem seu vinhedo, na cidade de Pinhel, no interior de Portugal. A propriedade que o jurista herdou do pai agricultor é a paixão da família. Ele contou sobre as videiras em uma entrevista exclusiva à reportagem da Gazeta do Povo, quando esteve em Curitiba para o X Simpósio Nacional de Direito Constitucional, no fim de maio. Canotilho contou também sobre como, em 1975, reuniu-se em sua casa com alguns companheiros comunistas para redigir, em menos de uma semana, a Constituição de Portugal. Seus olhos marejam quando relembra a noite de maior solidão de sua vida: quando precisou decidir se ia ou não para a guerra. O jurista também explicou a evolução da teoria da constituição e avaliou as mudanças na Constituição Brasileira e a atual realidade da Comunidade Europeia.

O senhor defendeu por um tempo a constituição dirigente, mas depois passou a defender que a sociedade civil deve garantir alguns direitos e não "tanto" o Estado. O que levou o senhor a mudar de opinião?Não podemos esquecer de que participei da elaboração do projeto da Constituição portuguesa pelo partido comunista. E, curiosamente, o projeto do partido comunista foi feito na minha casa durante uma semana, com a minha mulher a alimentar três ou quatro pessoas. Na nossa perspectiva, a Constituição era o elemento que fazia parte da metanarrativa de libertação e de construção de uma sociedade socialista. E nesta perspectiva que se deve localizar a minha ideia de reflexão sobre o sentido de constituição dirigente. A própria norma constitucional era uma alavanca de Arquimedes na transformação social. Tendo em conta a evolução em sentido contrário, a queda do muro de Berlim e a dificuldade de transformação, no fundo uma norma fundamental é importante, mas, sem suporte social, sem suporte participativo, de mobilização, dificilmente uma norma é uma norma dirigente. É neste sentido, não é fuga.

A proposta de constituição europeia hoje corresponde às necessidades da União Europeia?Não se pode ter uma visão única. Como se sabe a Constituição europeia não existe. Ela foi revisitada e temos frações nos principais tópicos. Mas desde o início há, na União Europeia, três cruzamentos econômicos e ideológicos. Um que é o esquema anglo-saxônico, que é no fundo o liberalismo. Portanto, a união europeia é uma comunidade econômica.Depois, veio a ideia de uma união política. Tinha havido uma desunião em função da guerra e o que se queria era paz, prosperidade e amizade. Inicialmente não era uma ideia ambiciosa, e não poderia ser diferente, lá estava a guerra, os escombros, mas isso depois de conquistada a estabilidade econômica.Em seguida, avançou-se na ideia de união política no Tratado de Maastricht e começou-se a falar de um Estado de Direito Europeu, de uma comunidade política europeia, de uma Constituição, ou seja, começou-se a aprofundar a ideia de um sentido político. Nessa altura também já havia outra perspectiva do Estado, que era o Estado dos Nórdicos – alguns não faziam parte da União Europeia – era o Estado social. Era o milagre da confluência entre o capitalismo e de ideias social-democratas e, por outro lado, a confluência em torno de ideias de solidariedade, vinda da ideologia social democrata e do "solidarismo" católico-cristão.

E a Agenda de Lisboa trouxe mais evolução?Por volta de 2000, pretendeu dar-se outro salto, a Agenda Lisboa. A ideia de concorrência, do saber, conhecimento, de inovação, investimento e tecnologia que transformasse a União Europeia numa comunidade verdadeiramente concorrente em todos os aspectos em nível mundial. Nessa altura já se discutia também o que era o social. Na perspectiva da Agenda de Lisboa não era muito fácil conseguir uma utopia, em que nos aspectos sociais e fiscais, todos tivessem, a mesma legislação. Então passou a se investir no social. A UE, ao invés de se aprofundar, alargou-se, e se abriu para os países do Leste. E Portugal perdeu muito, porque os investimentos que tinham feito no país passaram a deslocar-se para os países do Leste.Em 2003, a União Europeia já havia definido os pactos de estabilidade de crescimento com os vários parâmetros do desenvolvimento, do déficit. A ideia que fica é de que a União Europeia é uma comunidade econômica no modelo liberal inglês. E o modelo do estado social implica em algumas políticas distributivas para certa justiça social e políticas públicas compensatórias para formação escolar, formação de cidadãos. Teríamos justiça social de um lado e, dentro dessa justiça, a inclusão de políticas compensatórias para assegurar a igualdade de oportunidades.Em suma, a Constituição europeia é um modelo compatível com a versão liberal-social e econômica-social, portanto, compatível com o modelo inglês, com o alemão ou nórdico. Não é fácil, a Irlanda não quer ter impostos altos. Polônia, República Tcheca não querem ter impostos altos. A Europa tem menos coesão e menos cumplicidade com relação dos problemas que estamos a viver.

Então, é possível vislumbrar a aplicação de uma Constituição europeia? Um modelo que funcione implica cumplicidade entre todos os Estados. Um passo importante seria uma correspondência do modelo fiscal e da legislação do trabalho. Tudo isso forneceria os parâmetros de uma constituição material. Mas no momento tudo isso é difícil.

No caso brasileiro, como o senhor avalia a Constituição de 1988? Acompanhei desde o início a criação da Constituição brasileira e eu até era acusado de influenciar os constituintes brasileiros. Minha tese não pretendia ser uma cartilha para o Brasil, mas foi utilizada para uma ideia que marcou o constitucionalismo brasileiro nos dez anos seguintes, que era a luta pela efetividade e eficácia das normas constitucionais. Ainda hoje, invoca-se muito, quando há conflitos, o direito à saúde, direito à segurança social, direito à livre iniciativa econômica. A discussão da Constituição acaba por estar ligada às políticas econômicas dos presidentes do Brasil. Esta evolução não pode ser apreciada independentemente das políticas econômicas do governo.

O senhor acha que as emendas à Constituição brasileira são excessivas?No conjunto, há emendas demais à Constituição brasileira, mas uma Constituição só é viva com emendas e apesar das emendas. Há emendas muito localizadas no tempo, no espaço e nos problemas. E há outras emendas que representam uma evolução razoável e uma concretização razoável.

O senhor participou da guerra em Guiné-Bissau na década de 1960. Como foi essa experiência?Eu fui pra guerra, aquela dramaticidade de decisão absolutamente solitária. O irmão mais velho chegou a mim com um telegrama e disse que estava convocado para Guiné. Não é fácil a vida, eu já estava formado em Direito. Este meu irmão, que era como um pai, disse que não podia me auxiliar, mas que se eu quisesse desertar, haveria pessoas que ajudam na fronteira os trabalhadores a desertar. Nunca se sabe se a gente regressa vivo da guerra. Nesta noite, evidentemente, não dormi. A maior solidão do mundo [os olhos de Canotilho se enchem de lágrimas]. No dia seguinte eu disse: "Mário, eu vou pra guerra, não me vejo desertor. Ir para Paris? Não temos dinheiro para isso. Nunca mais voltar à minha pátria, não ver mais meus pais, que já eram velhos" E fui. Não há grandes segredos na vida da gente, nos não temos um projeto, são muitos aconteceres. Quando explico aos alunos o que é uma decisão, em profunda solidão, essa é uma delas. Ninguém podia decidir por mim.Depois de se aposentar da Universidade de Coimbra, o senhor se dedica a quais atividades no momento?Estou reescrevendo um livro de Direito Constitucional, que está na 7ª edição. Observei que precisava responder a algumas angústias do Direito Constitucional do século 21. Outro projeto a qual me dedico há seis anos, claramente utópico, é a criação de um tribunal judiciário universitário europeu. Não é tarefa fácil porque é preciso articular com o Ministério da Justiça, Conselhos Superiores de Magistratura, juízes, Ministério Público, advogados, profissionais de Direito. Queremos continuar ligados à Europa através de outra perspectiva, além dos tribunais nacionais, que possamos ter um Tribunal de Justiça da União Europeia, por exemplo, para fornecer conhecimento aos estudantes, advogados, auditores. Hoje uma Justiça Internacional é cada vez mais relevante. Está previsto ainda um centro de investigação forense. É preciso conscientizar aos profissionais da área e às pessoas que nem todas as questões são resolvidas em tribunais, nem deve ser assim. Para solucionar conflitos, podem ser criadas essas novas esferas. Também sou presidente de Assembleia geral da Cooperativa de Vinhos. Se não fosse jurista, seria engenheiro agrônomo.

Engenheiro agrônomo?Quando posso, procuro estar no meio das videiras. Meu pai era um pequeno agricultor e me deixou uma propriedade rural, em Pinhel. A cooperativa foi fundada por meus pais e outros pequenos agricultores que dependiam dos grandes comerciantes para vender vinho. Os meus filhos dizem: "não precisamos que nos deixe nada, mas a casa dentro das videiras, esta não podes vender".

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