
"Porque esse é o meu nome! Porque não posso ter outro em minha vida! Porque estaria mentindo e assinando mentiras. Porque não valho a poeira dos pés daqueles que mandou enforcar! Eu já dei a minha alma ao Senhor, deixe-me ficar com meu nome!". A citação acima foi retirada da obra As Bruxas de Salém, de Arthur Miller, que também foi tema de filme, lançado em 1996. O trecho em questão, porém, também foi utilizado como argumentação em uma decisão judicial a favor da autora que reclamava de atentado à honra.
A argumentação não só mostra como a literatura ajuda a fundamentar a realidade, mas como o próprio direito se utiliza dessa ferramenta para interpretar a sociedade. Essa relação entre direito e literatura pode ser analisada de três formas: o direito na literatura; o direito da literatura, que trata dos direitos do autor ou de uma obra e de temas relacionados, como a liberdade de expressão; e, ainda, a utilização de práticas da crítica literária para compreender e avaliar os direitos, as instituições e procedimentos judiciais, o que seria o direito como literatura.
VÍDEO: Os professores Vera Karam e Luís Bueno comentam a obra "Vidas Secas", de Graciliano Ramos
Esta última relação do direito com a literatura, como explica Vera Karam, professora da disciplina de direito e literatura da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é o estudo de temas jurídicos e da própria realidade em que estão inseridos com a ajuda das obras literárias. "A literatura surge como uma metáfora que o direito usa para tentar articular uma boa solução para aquilo que é chamado a responder", explica.
Essa relação interdisciplinar entre as áreas começou a ser estudada mais profundamente nos Estados Unidos na década de 1970 com a criação de cursos e disciplinas acadêmicas que surgiram para teorizar a relação entre direito e literatura. "Porém, muito antes disso, os juristas já se utilizavam metaforicamente da literatura não só para explicar o próprio procedimento judicial, mas também a forma e a matéria jurídica", conta ela.
Esse campo do estudo tem sido ampliado pelas universidades e virou ferramenta de professores e alunos para fundamentar teses e, ainda, ampliar áreas de saber jurídico e da própria realidade. "O aplicador do direito é constantemente demandado a dar respostas a conflitos concretos e diversos, e a literatura justamente abre um espaço de reflexão e de ação mais crítico, porque é mais sensível às especificidades do humano", aponta Vera.
"A literatura amplia os horizontes, já que possibilita ao leitor experimentar, de um modo seguro, situações que ele provavelmente jamais viveria. A boa literatura estimula a reflexão e desperta o senso crítico", complementa Lenio Streck, procurador de Justiça do Rio Grande do Sul e professor de Pós-Graduação em Direito na Unisinos-RS.
A comprovação de sucesso dessa mistura pode ser medida pelo programa televisivo "Direito e Literatura", gravado pela TV Unisinos e transmitido três vezes por semana na TV Justiça. A apresentação do programa é de Streck que, em seis anos, em conjunto com operadores do direito e especialistas da área de Letras e Literatura, já analisaram mais de 180 obras literárias pela visão jurídica.
Novas perspectivas
Para Vera, além de trazer novas perspectivas aos operadores do direito, a literatura antecipa temas relacionados ao universo jurídico. "A ficção literária tem essa riqueza, essa sutileza, essa sensibilidade que permite que o direito às vezes fique até mais bem preparado para o enfrentamento de conflitos que seriam inimagináveis fora da ficção", diz.
A linguagem, que no direito encontra suas especificidades e na literatura é registrada de maneira mais diversa e livre, também é apontada pelos especialistas como um ponto chave da interpretação jurídica por meio das obras. "Olhando a operacionalidade, a realidade não nos toca, as ficções, sim. Com isso, confundimos as ficções da realidade com a realidade das ficções. Ficamos endurecidos. A literatura pode ser mais do que isso. Faltam grandes narrativas no direito, e a literatura pode humanizá-lo", finaliza Streck.
Saiba mais:
O programa Direito & Literatura, apresentado pelo professor Lenio Streck com a produção de André Karam, está no ar há seis anos e é transmitido pela TV Unisinos-RS (http://www.unisinos.br/direitoeliteratura) e pela TV Justiça três vezes por semana terça-feira, às 11 horas; quarta-feira, às 20h30; e sexta-feira, às 7h30. No site da instituição, estão disponíveis os arquivos do programa, que contém mais de 180 obras comentadas.
Lenio Streck e André Karam também lançaram recentemente o livro "Direito e Literatura da realidade da ficção à ficção da realidade". A obra traz uma reunião de artigos que evidenciam a relação entre a realidade, principalmente em seus aspectos políticos, sociais e jurídicos, e o universo ficcional.
Vida Pública | 18:19
Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é um bom exemplo de como direito e literatura estão em diálogo permanente. Os professores de Letras, Luís Bueno, e de Direito, Vera Karam, ambos da UFPR, debatem a obra e falam dessa relação entre arte e realidade.




