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Direito do Trabalho

Um novo olhar no Judiciário

Ricardo Tadeu Fonseca, desembargador do TRT da 9ª Região

 | Walter Alves/ Gazeta do Povo
(Foto: Walter Alves/ Gazeta do Povo)
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O Triste Fim de Policarpo Quaresma foi o único livro que o desembargador Ricardo Tadeu Fonseca leu com os próprios olhos, com a ajuda da então recém-lançada telelupa. Logo depois, ele, que já tinha baixa visão, tornou-se completamente cego. Era o seu terceiro ano de faculdade.

Mesmo assim, Fonseca demonstra um vasto conhecimento, adquirido com o auxílio de ledores, ao citar de memória trechos de leis e livros. Primeiro membro do Ministério Público cego do Brasil, nomeado em 1991, e primeiro desembargador cego do Brasil, nomeado em 2009, Fonseca teve de superar, no início da carreira, a eliminação de um concurso para juiz por causa da deficiência, mesmo tendo nota para ser aprovado.

O desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região recebeu a reportagem da Gazeta do Povo em seu gabinete, no início deste mês. Durante a entrevista, música de fundo, Beatles... Parte da trilha sonora que ele gosta de ouvir enquanto trabalha. Na sala, um quadro minimalista com predomínio da cor amarela, pintado pela esposa, Suzana. É para dar leveza ao ambiente de pilhas de processos.

O trabalho infantil foi tema da sua dissertação de mestrado e o senhor colaborou com a criação da Lei 10097/2000. Como o senhor avalia a realidade da exploração do trabalho infantil hoje?

O trabalho infantil é proibido e eu defendo isto. Tive algumas experiências chocantes no Ministério Público (MP), quando vi crianças trabalhando em olarias ou carvoarias, no interior do estado de São Paulo. O MP tomou várias medidas para extirpar este trabalho infantil. Mas o que nos chocou muito, naquela época, era anos 2000, é que as mães choravam muito e pediam que nós permitíssemos que as crianças continuassem trabalhando, porque senão eles não teriam o que comer no dia seguinte... Nós vimos crianças de cinco ou seis anos em condições de trabalho que nem um adulto suportaria. O trabalho infantil ainda é uma nódoa da nação brasileira que precisa ser banida. As crianças no Brasil trabalham para comer. Então, realmente, o Bolsa Família não é demagógico, é muito necessário. Eu vi o quanto é necessário. As pessoas têm fome, muita fome, e crônica, por isso impõem trabalho aos filhos: para sobreviver mesmo.

Na realidade de hoje, o que falta para erradicar o trabalho infantil?

O que eu acho que seria contundente – e não entendo por que o Brasil não adota isso – seria uma escola pública, universal e de qualidade. A escola pública é o locus em que deveriam estar todas as crianças, pobres, ricas, brancas, pretas, etc. Isto é algo que o Brasil realmente continua deixando a desejar em termos de banir o trabalho infantil. Precisamos de educação em tempo integral, de qualidade e universal. É inadmissível esta coisa de separar as crianças em guetos. Crianças ricas em uma escola, crianças pobres em outra escola. Isto é um absurdo. Eu acho uma pena que o Brasil tenha privatizado a educação de forma tão exacerbada, em detrimento da escola pública.

Qual a sua opinião sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do trabalho escravo?

Eu não compreendo e lamento porque o Congresso não votou ainda. Sei que os ruralistas são muito organizados e poderosos no Congresso. Mas, não se justifica, porque, mesmo para o agronegócio, a exploração do trabalho em condição análogo ao escravo é uma vergonha. O Brasil tem de banir isso. Se passar como está, com a previsão de que as pessoas vão ter a terra confiscada, perfeito. Esta emenda atende ao princípio constitucional da função social do trabalho, da livre iniciativa e da função social da propriedade.

E, com relação às pessoas com deficiência, como está a questão da igualdade?

As pessoas com deficiência não têm até hoje o direito de ir e vir. Não têm direito a lazer, à cultura, à educação, porque as escolas não estão abertas para eles. E, na verdade, sempre imperou no Brasil a ideia de que a deficiência é um problema da pessoa, deveria ser visto clinicamente e tratado como tal. E os cuidados deveriam ser dos pais, dos amigos e das ONGs. A sociedade brasileira jamais se responsabilizou por isto. Eu tive a oportunidade de participar na elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, na ONU, em 2006. Essa convecção adota um conceito social e político: "a pessoa com deficiência é aquela que tem um impedimento de ordem física, mental, intelectual ou sensorial duradouro, o qual, em interação com diversas barreiras impedem sua verdadeira participação na sociedade". Essa convenção foi a primeira que o Brasil ratificou com status constitucional. Foi uma emenda incorporada à Constituição, com votação realizada em dois meses nas duas casas. Nós falamos: se nunca foi feito, nós temos que fazer, porque a sociedade nos deve isso.

Qual sua opinião sobre a flexibilização das leis trabalhistas? O senhor acha que a redução de encargos para os empregadores seria favorável para o mercado de trabalho?

Não creio. Houve uma grande confusão nos anos 1990, no sentido de impor uma forma de pensar economicista, que deveria se sobrepor a tudo mais. Era uma ideia de que o mercado deveria reger as relações humanas e o Estado não deveria intervir. Mas a crise de 2008 acabou sendo custeada pelo Estado. O livre mercado também é um mito, é algo que desde o século XVIII já se vê que não funciona. Na verdade, os direitos sociais não são custos, são avanços do processo civilizatório. Os direitos sociais do trabalho preservam o próprio capitalismo, porque o direito do trabalho assegura a distribuição de renda, sem a qual não há consumo. Sem consumo, não há capitalismo. Este é o papel da legislação do trabalho: equilibrar as forças entre capital e trabalho, preservando a dignidade humana. Na verdade, os encargos que encarecem a folha são estes que o próprio governo atual percebeu. Estão tirando da folha de pagamento encargos que não são direitos trabalhistas, mas são impostos, que poderiam estar sobre o faturamento ou nem deveriam estar sendo pagos. A função do Direito do Trabalho é relevantíssima, não no do ponto de vista paternalista, de proteger o "trabalhadorsinho". O Direito do Trabalho existe para equilibrar a relação entre capital e trabalho. Essa ideia de ter um equilíbrio de forças vem de longe, vem de Aristóteles que diz que "a verdadeira igualdade reside em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais." Tem uma frase ainda mais perfeita. [Para...busca na memória e cita em voz baixa]. "Necessito da igualdade sempre que a minha diferença me inferioriza. Necessito, porém, da diferença quando a igualdade me descaracteriza."

O senhor é a favor das cotas nas universidades?

Eu estou também a defender cotas para pessoas deficientes, ações afirmativas raciais. O artigo terceiro da Constituição foi o lastro das ações afirmativas e impõe ações fortes. "Construir uma sociedade livre, justa e solidária" significa reconhecer que não a temos e que devemos trabalhar para isso. "Erradicar a pobreza", veja que o verbo aqui é fortíssimo. "Eliminar a desigualdades e promover o bem de todos" . Ou seja, as ações afirmativas existem para compensar diferenças notórias em relação a grupos vulneráveis, enquanto essas diferenças existirem. Elas têm, por natureza, a transitoriedade, mas elas são necessárias. Como sustentou o ministro Lewandowsky, houve, por séculos, uma política contrária ao interesse dos negros. Primeiro com a escravidão e, depois, uma política que se chamou de branqueamento do Brasil. A base dessas políticas está no artigo terceiro e em nada fere o artigo quinto. Muitas das pessoas que não foram aprovadas no vestibular poderiam evocar "todos são iguais perante à lei". Eu vi uma sentença muito linda de um juiz que dizia que a igualdade de que se cuida aqui não é aquela do Século 18, formal. O processo civilizatório já avançou para buscar a igualdade real, mais do que a material ou substancial.

O senhor ficou cego durante a faculdade. Como foi?

Eu já tinha baixa visão, desde a infância. Minha mãe precisava ampliar as letras, não havia equipamentos eletrônicos. No terceiro ano da faculdade, surgiu uma invenção que era uma lente super forte, chamada telelupa. Pela primeira vez, pude ler eu mesmo um livro, "O Triste Fim de Policarpo Quaresma", do Lima Barreto. Infelizmente, depois que eu terminei de ler este livro, eu comecei a ter um descolamento de retina e perdi a visão completamente. Foi o único livro que li, porque os outros eu sempre ouvi gravações ou pessoas leram para mim. Até, hoje, eu trabalho com ledores humanos.

E como é feito o trabalho no Tribunal?

Meus assistentes leem tudo pra mim, claro que eu conduzo. A gente lê rapidamente, como qualquer juiz lê, rapidamente, e sabe o que lê, a leitura técnica. Quando cheguei aqui havia mais 1 mil processos atrasados. Nós temos aqui uma distribuição de 200 processos para relatar, mais 200 para revisar, são 400 novos por mês. Eu consegui baixar estes atrasados em três anos sem férias. Conseguimos zerar o gabinete, foi uma grande conquista da equipe.

E o senhor lê em Braile?

Não. Quando eu perdi a visão era pouco operacional aprender braile. Os processos são em papel, poucos livros... Então, eu optei por manter a minha catarse com a música. Eu gosto muito de tocar violão e eu acho que, para ter sensibilidade nos dedos, talvez eu precisasse tocar menos violão. Eu preferi manter um contato mais intenso com a música. Eu fico aqui ouvindo música o dia inteiro.

De que tipo de música o senhor gosta?

Toda música, em geral. Quando eu era jovem, eu tocava rock’n roll e choro, eu participava de dois grupos. E eu ganhava dinheiro com o grupo de MPB e choro porque não me davam trabalho por causa da falta de visão. Eu aprendi a trabalhar fazendo assistência judiciária no Centro Acadêmico 11 de Agosto, da faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP.

Como era este trabalho?

Era uma iniciativa que, na minha época, era dos alunos, não havia a obrigatoriedade como havia hoje. Eu aprendi muito atendendo o povo. Mudou minha vida, porque eu sempre fui um moleque de classe média, meio alienado. Quando eu tive contato com o povo, entender o que eles falam e me fazer entender por eles foi um exercício tão difícil e tão transformador. Entender a sabedoria que estava por trás daquele Português mal falado. Ah, eu aprendi muito fazendo assistência judiciária.

Mesmo tendo passado na prova escrita para juiz, o senhor foi reprovado em um concurso por ser cego. Como recebeu isso?

Eu estava entre os 10 primeiros lugares, aí anteciparam o meu exame médico, que seria depois sentença, que era a última prova, eliminatória, e me cortaram. Foi muito violento, foi um gesto que doeu profundamente, mas rapidamente eu me levantei porque um grupo de amigos muito leais ficou comigo redigindo mandado de segurança até às 3h da manhã. E tivemos a honra de ter o apoio do ministro Eros Grau, que era meu professor, e assinou o mandado. A gente sabia que ia perder, mas caiu esgrimando. E essa coisa de esgrimar é que me deu força para continuar estudando e acreditar no Direito. Sou o primeiro juiz cego, o primeiro membro do MP cego. O Judiciário, hoje, está pronto para receber uma pessoa cega. Em 20 anos, nós conseguimos mudar isso.

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