
A cearense Maria da Penha Maia Fernandes dormia quando o marido deu um tiro em suas costas. Ficou paraplégica. Ele só foi preso quase 20 anos depois. A tragédia pessoal da biofarmacêutica, um dos mais emblemáticos casos da história brasileira na luta das mulheres por mais direitos e cidadania, teve repercussão mundial e batizou a lei que cria ferramentas que tentam coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei Maria da Penha. A norma completa nove anos no mês de agosto, entre méritos penais e a urgência em discutir sua efetividade.
Reconhecidamente, a Lei 11.340/06 estabeleceu um novo parâmetro constitucional. Dentre os inúmeros avanços, a violência contra a mulher parou de ser avaliada como um crime de menor potencial ofensivo e deixou-se, por exemplo, de se aplicar penas pecuniárias, quase simbólicas, como o pagamento de cestas básicas e multas. Antes da Lei Maria da Penha, acontecia de muitas mulheres serem obrigadas a entregar a intimação para o agressor comparecer às audiências. Mecanismos inéditos passaram, então, a tipificar a violência em casa e a estabelecer medidas que o Estado deve realizar para uma sociedade mais igualitária. Ou ao menos deveria.
Mesmo com um princípio de igualdade mais esclarecido e a concepção de espaços protetivos, como defensorias públicas, casas-abrigo e delegacias especializadas, há questões sociológicas e estruturais entranhadas – e que ultrapassam o rigor da lei.
O Brasil segue um lugar muito difícil para as mulheres. Uma demonstração disso é o balanço dos atendimentos realizados pela Central de Atendimento à Mulher, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR). Foram registradas, em 2014, 52.957 denúncias de violência contra a mulher. 27.369 foram denúncias de violência física (51,68%). “A Lei Maria da Penha não diminuiu a incidência de violência contra nós. Tivemos um avanço legal, mas não uma melhoria social. A Lei é uma conquista, mas as mulheres não deixaram de ser agredidas e de morrer. Seguimos vendo, semana a semana, casos de brutalidade”, afirma a advogada e ativista do movimento feminista Xênia Mello.
O abismo entre a tábua escrita e o cotidiano mais chão fica evidenciado em pesquisas que aferem questões comportamentais. O estudo “Tolerância social à violência contra as mulheres”, também de 2014, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), revela sérias incoerências. Enquanto 91% dos homens, num recorte de 3.810 entrevistados, concordam que homem que bate em mulher deve ir para a cadeia – não deixa de ser assustador observar que 9% de homens julgam que bater em mulher é normal –, 58% acreditam, total ou parcialmente, que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros.
As contradições numéricas mostram também um panorama mais amplo. De acordo com Jobana Moya, membro do projeto Warmis – Convergência das Culturas, que realiza campanhas de incentivo à não-violência contra a mulher imigrante, os abusos se exercem de modo cultural. “No papel, a Lei Maria da Penha é fantástica. Contudo, o Brasil, e a América Latina como um todo, é muito machista. A educação de valores machistas reforça a discriminação contra a mulher e gera a impunidade. Muitas mulheres têm até medo de denunciar a agressão aos agentes públicos, pois podem ser vitimadas mais uma vez”, avalia.



