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| Foto: Marcelo Andrade/Gazeta do Povo

O advogado Renato Almeida Freitas Junior costuma dar orientações em comunidades carentes de Curitiba e região sobre como se comportar em abordagens da polícia. Mas ele próprio, mesmo seguindo as regras que ensina, não obteve sucesso e acabou sendo detido sob acusação de perturbação da ordem pública e desacato. Freitas, que também é candidato a vereador na capital, foi preso em agosto por dois guardas municipais porque estaria ouvindo música em volume muito alto na região central de Curitiba.

Leia também: Advogado negro é preso por desacato e denuncia agressões e injúria racial

Formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) desde 2013 e mestrando no programa de pós-graduação da mesma instituição, onde pesquisa o sistema carcerário, Freitas conta que faz trabalhos em regiões de vulnerabilidade social e procura orientar os moradores a como se portarem em abordagens da polícia, justamente para evitar enfrentamento.

“Vocês não podem me algemar, há uma súmula do STF que define que o uso de algema é somente para situações extremas.”

A primeira orientação é a de que as pessoas abordadas devem sempre ter o direito de estar presentes quando seus carros, mochilas ou carteiras forem revistados, para que, em caso de algo ilegal ser encontrado, o dono reconheça. E o próprio Freitas também explica que quem passa por revista tem o direito de saber a fundamentação da suspeição, ou seja, qual o motivo que o levou a ser suspeito e a ser abordado.

Além disso, as pessoas são instruídas de que têm o direito de não serem agredidas. “É importante explicar isso pra elas, porque há um processo de naturalização da violência”, explica o advogado. “As pessoas muitas vezes acham que é normal serem agredidas e que o papel das autoridades é agredir mesmo.”

Caso pessoal

Ele conta que logo no momento em que foi abordado por dois guardas policiais se posicionou com as mãos na cabeça e com as pernas abertas para evitar o enfrentamento ou qualquer tipo de agressão por parte dos dois. Mas isso não foi suficiente. Segundo o advogado, desde o início da abordagem os dois apontaram uma arma e, enquanto ele ainda estava sentado no meio fio ao lado do próprio carro, que estava com o som ligado, já chegaram dizendo: “A casa caiu, puxa a placa”, procurando descobrir quem seria o verdadeiro proprietário do veículo. “Eles já chegaram fazendo pressão psicológica, como seu eu não pudesse ser o dono.”

Quando Freitas apresentou sua carteira profissional de advogado, as agressões verbais aumentaram. Os guardas teriam dito: “Falsificação já tem”. E ainda em tom deboche: “Esse ‘dingo’ – gíria para mendigo – é advogado!”

Uso de algemas

Mesmo sem ter oferecido resistência, segundo seu relato, Freitas conta que foi algemado e avisou os guardas: “Vocês não podem me algemar, há uma súmula do STF que define que o uso de algema é somente para situações extremas”. Mesmo assim os guardas o mantiveram algemado e, quando o colocaram no camburão, um deles teria dito: “tenta tirar a algema com a súmula”.

Freitas se referia à Súmula Vinculante 11 do STF, que diz o seguinte: “Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.

Dentro do camburão e algemado, o advogado conseguiu tirar o celular do bolso e fazer um post no Facebook em que avisava que havia sido detido. Quando os guardas perceberam, abriram novamente o camburão, lhe tomaram o aparelho e bateram em sua cabeça, a ponto de ele quase desmaiar. Quando chegou ao 3.º Distrito da Polícia Civil, o advogado não conseguia caminhar porque estava com as mãos presas embaixo do quadril. Mesmo assim foi forçado a tentar caminhar – em um dos momentos em que sentiu mais dor. Depois de ele insistir, tiraram a algema para que saísse da viatura e voltaram a colocá-la para que ele fosse apresentado.

No interior da delegacia, Freitas foi acusado de estar ouvindo som alto e de desacato. “Ele disse que é advogado e ninguém prende ele”, teriam dito os guardas, que sempre se referiam a ele como “advogado” em tom pejorativo. Lá, ele teve de tirar toda a roupa, mesmo diante de uma policial mulher, e ainda foi jogado dentro de uma cela sem nem ao menos poder dar um telefonema, direito de todo cidadão que é detido.

Ele conta ainda que os guardas o chamaram de negrinho várias vezes, disseram que estava ouvindo música de favelado – era rap – e que ele “parecia um personagem do Carandiru [livro de Dráuzio Varela, que ganhou uma versão para o cinema, em que o médico relata histórias de diversos presos do Presídio Carandiru, em São Paulo]”. “Tudo isso são estratégias para atacar o seu psicológico, para que você perca as forças, para fazer parecer que você merece tudo aquilo que está acontecendo com você. O problema é que eles acabam conseguindo entrar dentro da sua cabeça e, enquanto estava na cela, nu, pensei por alguns instantes isso”, revela.

Não foi a primeira vez

Renato de Almeida Freitas Junior, que é negro, já passou por “gerais” da Guarda Municipal outras vezes. Em uma delas, estava com um grupo de jovens, uma das meninas jogou uma garrafa pet no chão, mas ele e mais dois é que acabaram sendo detidos.

“As pessoas muitas vezes acham que é normal serem agredidas e que o papel das autoridades é agredir mesmo.”

Em outra situação, quando voltava do cursinho, no Terminal do Cabral, os guardas viraram todo seu material no chão molhado da chuva, o fizeram ficar descalço e, quando ele fez o gesto de cheirar o tênis como se tivesse com chulé, resolveram levá-lo para o 3.º Distrito Policial – o mesmo para o qual foi levado em agosto.

Casos de racismo também não são novidade na vida dele: quando fazia cursinho pré-vestibular, foi abordado na saída da aula, na frente de colegas, sob a alegação de que havia denúncias de que estavam “roubando aulas”, ou seja, assistindo sem estar matriculado. E, quando cursava Ciências Sociais – antes de entrar em Direito – na Universidade Federal do Paraná, foi abordado por um segurança que queria impedi-lo de andar pelo prédio da instituição: “Aqui é só para alunos”.

Mesmo tendo passado por todas essas situações, o advogado diz que essa prisão em agosto foi a situação mais sofrida. “Eu trabalhava como empacotador, me sentia invisível e acabava ficando embrutecido. Hoje, depois de estudar e conhecer meus direitos, fiquei mais sensível a isso tudo”.

Outro lado

A assessoria de comunicação da Prefeitura de Curitiba informou que foram abertos um procedimento administrativo para averiguar a conduta dos dois guardas e duas sindicâncias, uma interna pela própria Guarda e outra externa pela Procuradoria do Município. Todos devem ser finalizados ainda nesta semana e encaminhados ao direitor da Secretaria de Defesa Social. A assessoria também informa que os vídeos das câmeras de segurança da região estão à disposição dos advogados de Renato Almeida Freitas Junior e do Ministério Público, mas que até a publicação desta reportagem não havia recebido a solicitação das imagens.

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