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Memória

O prédio onde a repressão nasceu

Após conseguirem o tombamento do Doi-Codi de São Paulo, ativistas lutam para que no local seja instalado um memorial aos 5 mil presos políticos que passaram pela primeira unidade de tortura da ditadura militar

Doi-Codi funcionou nos fundos de onde hoje fica o 36º Distrito Policial, no meio de uma região nobre de São Paulo | André Lachini
Doi-Codi funcionou nos fundos de onde hoje fica o 36º Distrito Policial, no meio de uma região nobre de São Paulo (Foto: André Lachini)
Herzog: assassinado no Doi-Codi por agentes da ditadura, que oficialmente informaram que ele havia se suicidado |

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Herzog: assassinado no Doi-Codi por agentes da ditadura, que oficialmente informaram que ele havia se suicidado

Entidades de defesa dos direitos humanos, ex-presos políticos e de parentes de desaparecidos defendem que as antigas instalações do Doi-Codi de São Paulo sejam transformadas em um memorial às vítimas da ditadura militar (1964-1985). O Doi-Codi da capital paulista – um centro de detenção provisória, torturas e assassinatos – funcionou entre 1969 e 1979 em um prédio na Rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Por ali passaram pelo menos cinco mil presos políticos, dos quais 51 foram assassinados no local.

No dia 27 de janeiro, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo (Condephaat), órgão ligado à Secretaria Estadual da Cultura, anunciou o tombamento das instalações, que englobam mais dois prédios: o 36.º Distrito Policial e um almoxarifado da Polícia Civil. O tombamento do complexo foi comemorado por ativistas como um passo importante para que no futuro seja instalado um memorial às vítimas no local.

"Foi uma decisão emblemática tomada a partir de uma manifestação da sociedade civil, que recorreu a este órgão", diz o secretário estadual da Cultura, Marcelo Matos Araújo. Segundo o Condephaat, a proposta de transformar o edifício em um memorial ainda será avaliada pela Secretaria da Cultura em conjunto com outros órgãos do governo paulista. Na prática, o tombamento impede a destruição ou alterações no complexo.

Núcleo de repressão

"O Doi-Codi de São Paulo foi o primeiro aparelho de repressão e tortura criado no Brasil. Aquilo lá era um centro de tortura e extermínio", diz o jornalista Ivan Akselrud de Seixas, de 59 anos. Seixas foi quem entrou com o pedido de tombamento do complexo no Condephaat, em 2012. O jornalista foi preso e torturado no local quando tinha apenas 16 anos, em 1971, juntamente com o pai – o metalúrgico e militante de esquerda Joaquim de Seixas. Joaquim morreu após as torturas. A mãe e as duas irmãs de Ivan também foram detidas no Doi-Codi.

"O tombamento é importantíssimo", diz o deputado estadual Adriano Diogo (PT), ex-preso político e líder da Comissão da Verdade de São Paulo. "O núcleo de inteligência da repressão política da ditadura era a Oban [Operação Bandeirante], que deu origem ao Doi-Codi. Foi a partir dali que a repressão se espalhou para outros estados brasileiros", complementa o deputado. "Se será feito lá um centro cultural ou não, é outra coisa. Primeiro é preciso contar que cinco mil pessoas foram presas e torturadas no Doi-Codi e exibir nas paredes as fotos de todos os que foram assassinados. O mais importante é contar a história, a história verdadeira."

Diogo lembra que a Operação Bandeirante foi criada em 1969 por militares, policiais e empresários ultraconservadores – já no período de vigência do Ato Institucional número 5 (AI-5), que suspendeu as garantias individuais da Constituição de 1967 (entre elas, o habeas corpus), iniciando assim o período mais pesado da repressão política.

A Operação Bandeirante passou a operar a partir do prédio cinza da Rua Tutóia, de onde seus esquadrões clandestinos saíam, muitas vezes em viaturas com chapas frias, para capturar suas vítimas – que podiam ser guerrilheiros, militantes de esquerda, líderes estudantis, jornalistas, advogados, operários, sindicalistas ou simplesmente cidadãos sem qualquer atividade política comprovada.

A partir de 1970, foi montada no local uma central do Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna – sigla Doi-Codi – do II Exército (São Paulo e Mato Grosso). A presidente da República, Dilma Rousseff (PT), que era militante do grupo VAR-Palmares, foi capturada pela Oban em janeiro de 1970 e torturada no local, antes de ser enviada ao Dops (Departamento de Ordem Política e Social).

Assassinato de jornalista marcou retomada da luta contra o regime

O preso mais emblemático do Doi-Codi paulista foi o jornalista Vladimir Herzog. Em 25 de outubro de 1975, Herzog, que à época tinha 38 anos, foi torturado e assassinado no local. A morte de Herzog, também conhecido como Vlado, gerou comoção nacional.

A versão propagada pela ditadura, de que o jornalista havia se suicidado, foi rapidamente rechaçada pela família de Vlado e pela oposição política. Essa versão também foi rejeitada pelo rabino Henry Sobel – ele recusou-se a sepultar o corpo de Herzog, que era de religião judaica, no terreno destinado aos suicidas no Cemitério Israelita do Butantã.

Poucos dias depois, ocorreu um culto ecumênico em homenagem a Herzog na Catedral da Sé, que reuniu mais de 10 mil pessoas e foi a primeira manifestação aberta contra a ditadura desde 1968, quando o Ato Institucional n.º 5 (AI-5) suspendeu direitos individuais. O culto, que teve a participação de Sobel, foi comandado por Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo.

Sem parar

A morte de Vlado começou a intensificar a reação da sociedade contra a ditadura. Mas isso não parou a máquina mortífera do Doi-Codi paulista. Em janeiro de 1976, o operário Manuel Fiel Filho foi torturado e morto no local. Em 16 de dezembro de 1976, o militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) João Baptista Franco Drummond foi torturado e assassinado no local.

Cinco sobreviventes da Chacina da Lapa, que ocorreu no mesmo dia da morte de Drummond, foram levados ao Doi-Codi e torturados. A série de prisões políticas e torturas parece ter acabado apenas em dezembro de 1978, quando o presidente-general Ernesto Geisel revogou o AI-5.

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