Em três dias, dois milhões de pessoas assistiram no YouTube a uma “pegadinha” feita por um grupo de Maringá. No vídeo, um carro deixado em cima de uma vaga para deficientes era recoberto de adesivos que formavam uma imagem gigante de um cadeirante, igual à que marcava no asfalto o fato de que aquele motorista não deveria estar ali. Ao sair do prédio, o motorista, irado, arranca alguns dos papéis e parte com o automóvel cantando pneus.
A maioria dos comentários na internet elogiava a iniciativa, dizendo que era necessário fazer algo para impedir que pequenos abusos como esse continuassem se repetindo no cotidiano. Mas alguns comentários diziam que a “censura moral” também era abusiva. “Se acham que algo está errado, devem procurar a Justiça para resolver e não fazer justiça com as próprias mãos”, disse um internauta. “Não é porque o cara errou que vocês também podem errar. Vai que o cara sofre um acidente por culpa desses papeizinhos”, disse outro.
Por trás da pegadinha está o velho descontentamento com o sistema policial e jurídico brasileiro: a ideia de que a impunidade é a regra e de que é preciso tomar caminhos alternativos para que infrações e crimes não se repitam infinitamente. “As pessoas que passaram por lá aplaudiram a ação e vaiaram o motorista. Ele ficou envergonhado, claro. Aprendeu a lição”, disse o produtor musical Vinícius Moretto, um dos responsáveis pelo vídeo.
Para Luiz Eva, professor de filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é possível, em certo sentido, comparar o impulso por trás da “pegadinha” com o de “justiceiros” que decidem punir criminosos por conta própria. “Em ambos os casos, talvez se possa dizer, haveria algo como uma suspensão provisória de um ‘pacto social’. Isto é, tanto o linchador como o autor da pegadinha pode ser visto como alguém que desespera da transferência do direito de punir ao Estado frente à reiterada e rotineira experiência de observar outros violando o mesmo pacto sem sofrer sanção.”
Claro que a comparação tem restrições. “Os casos são muito diferentes, é óbvio, na gravidade da infração com que os presumidos justiceiros cometem para reparar a justiça (se é que a colagem dos papeizinhos é tipificada como uma infração)”, diz o professor, que ressalta que no caso da “pegadinha” a retaliação é feita de maneira bem humorada e não violenta.
É claro que há casos de justiça com as próprias mãos inaceitáveis (...). Mas nesse caso a pessoa estava nitidamente cometendo uma infração proposital.”
No entanto, a “condenação moral” como forma de punição também é vista como polêmica. Para o escritor e ensaísta norte-americano David Foster Wallace, por exemplo, é preciso que se tome cuidado ao julgar os outros por pequenas infrações cotidianas.
“Posso passar meu tempo no trânsito do fim do dia me sentindo enojado com todas aquelas peruas e caminhonetes e utilitários imensos, imbecis, que trancam as ruas, queimando seus tanques imensos, destrutivos e egoístas de gasolina”, diz ele em seu texto. Mas, prossegue, “não é impossível que algumas dessas pessoas nas caminhonetes tenham sofrido horrendos acidentes de automóvel no passado e agora achem tão aterradora a ideia de dirigir que seus analistas quase ordenaram que comprassem uma caminhonete imensa e pesada para que pudessem sentir segurança para dirigir.” Embora não esteja falando de infrações, Foster Wallace está falando de comportamentos reprováveis e de uma possível falha de julgamento a que nosso conhecimento limitado nos leva.
Para o professor de ética Roberto Romano, da Unicamp, porém, esse raciocínio não se aplica à condenação moral de fatos obviamente contrários à lei, como é o caso da “pegadinha” de Maringá. “É claro que há casos de justiça com as próprias mãos inaceitáveis, que são violentos e põem em risco o Estado de Direito. Mas nesse caso a pessoa estava nitidamente cometendo uma infração proposital, desrespeitando a lei em nome de uma vantagem própria. Se eu estivesse lá, também vaiaria o motorista”, diz.



