
Em tempos idos, uma receita muito simples dava conta do que era preciso para um casamento bem-sucedido: "casa, comida e roupa lavada". O resto era o The End com o qual todo mundo já sonhou um dia. De tão perfeito, o "foram felizes para sempre" permanece o melhor programa de governo. Mesmo quando traduzido por termos mais engravatados, como habitação, alimentação e trabalho, a idéia é sempre a mesma: qualquer um que esteja empregado, nutrido e debaixo de um teto tem o que precisa para escrever a sua história.
Nos últimos meses, a onda de reassentamentos e regularizações fundiárias que varreu a capital e região metropolitana transformou numa cena de cinema o "final feliz" de 428 famílias curitibanas as primeiras agraciadas. Diante das câmaras de tevê, caminhões fizeram a mudança, operários iniciaram a demolição e moradores ganharam chaves de novíssimas casas de alvenaria erguidas longe das beiras de rio e dos fundos de vale.
Em dois anos, a operação, que ficou conhecida como PAC da Habitação Plano de Aceleração do Crescimento , deve mobilizar R$ 127,2 milhões e atingir 5.789 famílias apenas na capital. A força-tarefa feita em parceria com a prefeitura contudo, cobre apenas 10% da população de Curitiba que se encaixa na categoria sem eira nem beira. Além de não ter casa, essa gente come mal e vive de bico.
Há na capital do estado 241 mil pessoas vivendo em 258 ocupações irregulares e em 83 loteamentos clandestinos. É uma população que passou pouco tempo na escola, vive na informalidade, mora em áreas de risco e vive ao sabor de índices de violência tão assustadores que fariam do Velho Oeste um conto de fadas. Não é demais lembrar que a maior parte dessa gente trabalha no almoço para comer no jantar. E assim passam os dias: muito mal.
Pode-se argumentar que não há cidade brasileira de médio porte que não tenha milhares levando a vida na marmita. Mas os pobres de Curitiba são tão peculiares quanto a cidade aqui, é como se eles fossem uma miragem. Podem ser vistos nas ruas, mas pouco se sabe sobre seu endereço. "Curitiba é auto-suficente, arrecada metade do ICMS do Paraná, chega ser narcísica. São só 17% de pobres, mas a mística da cidade se desfaz na presença deles. Daí a rejeição", pondera o historiador Dennison de Oliveira, 44 anos, autor do livro Curitiba e o mito da cidade modelo (2000).
Em entrevista recente dada à Gazeta do Povo, a arquiteta Gislene Pereira, da UFPR, afirmou que o planejamento urbano da capital se deu de tal forma que um morador da classe média pode passar pela vida sem nunca ter visto uma favela de perto. Quem discordar, que arrisque fazer uma lista com o nome de pelo menos dez das 258 ocupações. É reprovação certa.
Gislene tem razão. Basta observar a incredulidade da classe média diante dos índices da favelização: "241 mil favelados? Mas como?" A riqueza, os parques, os edifícios neoclássicos e o milhão de veículos parecem desmentir o itinerário que conduz a endereços miseráveis como o Icaraí e o 23 de Agosto, para citar duas vilas que confundiriam uma foto da capital com uma favela de Lagos, na Nigéria.
Segundo o geógrafo Francisco Mendonça, da UFPR, diante do que falta à mesa dos mais pobres, as palavras de ordem são: desconcentração de renda. "Os gestores municipais podem deliberar a ponto de distribuir melhor a riqueza. Não há desculpas."
Em campo
A reportagem da Gazeta do Povo acompanhou no último mês dois reassentamentos nas vilas Parolin e Terra Santa, no Tatuquara e visitou a Bela Vista do Passaúna, uma área de 358 famílias encravada no pior ponto do Bolsão Sabará. Os moradores se preparam para a mudança: vão para uma casa da Cohab. Pode-se afirmar que em meio aos 1,7 milhão de habitantes de Curitiba, ninguém esteja mais próximo da idéia de casa, comida e trabalho do que essas pessoas.
No Parolin ocupação instalada há 60 anos na Baixada da Brigadeiro Franco serão 677 reassentamentos, 40% da vila. O resto é regularização. Dos 29 becos da área, apenas um deve ficar para contar história. E que história: de janeiro a junho deste ano, foram 14 homicídios numa população de 6 mil habitantes. Urbanização não significa só paredes cheirando à tinta, mas uma possibilidade de passar uma demão no passado de ilegalidade.
Em julho, quando houve o reassentamento de 28 famílias da vila, era esse o sentimento. O caminhoneiro Marcos Adriano Góes, 31 anos, deixou para trás, aos prantos, uma casa azul-piscina erguida há 50 anos e tomada pelos cupins. Pagou R$ 2,5 mil pelo imóvel, que podia não ter uma tábua decente, mas ficava num dos becos da vila em que nasceu. Esse componente afetivo não era levado em conta nos programas de desfavelização, mas se tornaram uma espécie de indício de que, depois do reassentamento, os moradores não vão vender a nova casa e começar tudo de novo.
Eis a questão: os 10% agora desfavelizados vão ser o termômetro das políticas habitacionais às pressas trazidas pelo PAC. É provável que algo esteja cru e quente. "O PAC beneficia algumas pessoas, mas penaliza muitas outras, pois não traz um mecanismo de exclusão do déficit habitacional. O que ainda impera em Curitiba é o fortalecimento do mercado imobiliário. O PAC vai ser um mico", avalia o advogado Vinícius Gessolo, da organização não-governamental Terra de Direitos, especialista em habitação.
Na Vila Terra Santa com 1.077 famílias, 479 delas sendo reassentadas no Moradias Laguna o sentimento ainda é de final feliz. Mas tudo indica que, sem um programa de assistência social tão bem montado quanto o do reassentamento pouca coisa vá mudar. Valdirene Lima Pereira, 31 anos, 5 filhos e marido desempregado, faz bico de diarista. Os sete da família vivem com um salário mínimo orçamento reforçado pela mãe de Valdirene, Isabel de Lima, 53 anos, aposentada.
Dos tempos de brejo na Terra Santa leva para o Laguna as más lembranças dos tiroteios e dos alagamentos. "Um carro quase caiu em cima da casa", lembra. Na nova residência longe dos ratos ainda vai ter velhos problemas. Para comer, os Pereira têm de arrumar R$ 200 por mês. Como nem sempre a verba aparece, a família usa do maná nacional a bolacha-maria. "Compro um pacote e a gente se vira", diz a mulher.
A um quilômetro de Valdirene, Solange Silva, 40, tem destino pior. Ela mora no vale profundo da Terra Santa, a Rua Jerusalém. Ali, a ponte divide duas gangues rivais. "Acho injusto tanta pobreza", diz ela. Não há problema que a londrinense e os filhos Sérgio, 10, Ingrid, 8, e Indira, 6 , não tenham enfrentado. Os Silva vivem com um salário, ganho na informalidade. O dinheiro que entra vai para o prato. Em meio a tanta penúria, já pressentiram as águas da enchente levando o barraco. E se assustam ainda hoje com a violência que confunde a Terra Santa ao Oriente Médio. A família enfrentou doenças respiratórias e hepatites. "É muito sujo. Tem de tirar o chinelo para entrar em casa."
No quarto-e-sala da dona de casa não faltam na parede retratos da cantora Sandy e dos filhos, panelas areadas, um brinco. Da janela dá para ver no terreiro os alimentos que o marido ganha da Ceasa. Ele encaixota e vende cada embalagem por R$ 10. É também o que a família come. Além da roupa lavada no varal, as sobras da Central de Abastecimento do Paraná são a única boa notícia na tapera sem número.




