
Prestes a completar um ano na próxima sexta-feira, a censura imposta pela Justiça ao jornal O Estado de S. Paulo continua causando indignação em profissionais e estudiosos da área de comunicação. Para eles, esse é um aniversário "triste e lamentável", que expõe uma decisão arbitrária e antidemocrática não só contra a imprensa, mas contra toda a sociedade brasileira.
O primeiro ano da censura ao Estadão também coincide com a retomada da polêmica discussão política sobre a possibilidade de controle social da mídia, que sempre volta à tona em ano eleitoral (veja reportagem ao lado).
Operação Boi Barrica
Desde 30 de julho do ano passado, o Estadão está proibido de veicular qualquer informação sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal, que investiga negócios supostamente irregulares do empresário Fernando Sarney, filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). Por decisão do desembargador Dácio Vieira, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, o jornal não pode divulgar o teor de gravações telefônicas que comprovariam a realização de tráfico de influência por parte de Fernando Sarney.
Em dezembro, pouco mais de quatro meses depois de ter obtido decisão que impediu o Estadão de divulgar reportagens da operação, Fernando Sarney resolveu desistir da ação que corria no TJ-DF na qual pedia a censura. Nesse meio tempo, o jornal já havia recorrido ao Supremo Tribunal Federal (STF), alegando que foi censurado, o que é proibido pela Constituição.
Mas o STF decidiu arquivar o recurso, por entender que os argumentos jurídicos do Estadão não cabiam naquela situação. Apesar disso, a defesa do jornal não aceitou o arquivamento. O objetivo é de que o mérito fosse julgado para que o STF considere inconstitucional a censura jurídica. O caso, porém, ainda não tem data para ir a julgamento.
"Episódio lamentável"
O diretor-executivo da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Ricardo Pedreira, diz que a censura ao Estadão fere o que determina a Constituição Federal, "que é muito clara no sentido de que não deve haver nenhum tipo de censura prévia no país". "É um episódio lamentável porque mostra uma visão equivocada de alguns setores do Judiciário em relação ao papel da imprensa na democracia", diz Pedreira.
A opinião é compartilhada por Daniel Slaviero, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), para quem a decisão da Justiça é "inaceitável e incompatível com a democracia". "É um triste aniversário, proveniente de uma decisão judicial que impede a população de ser informada sobre fatos relevantes", afirma.
Carlos Alberto Di Franco, professor de Ética e doutor em Comunicação pela Universidade de Navarra, na Espanha, classifica o caso como "algo inacreditável numa democracia plena". "Isso me preocupa, pois é uma demonstração de que um dos pilares da sociedade democrática a liberdade de imprensa e de expressão pode estar submetido ao arbítrio de interesses políticos."
Apesar de ter a mesma posição dos colegas de imprensa em relação ao episódio, o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Sérgio Murillo de Andrade, atribui "essa situação absurda" aos próprios veículos de comunicação. Segundo ele, a mídia, ao buscar desregulamentar o exercício profissional do jornalismo, tem contribuído para eliminar "o pouco que existe no ordenamento jurídico brasileiro voltado especificamente à imprensa".
O presidente da Fenaj cita, por exemplo, a revogação da Lei de Imprensa pelo STF em maio do ano passado. Para 7 dos 11 ministros, a lei, que foi editada em 1967 durante a ditadura militar , era incompatível com a democracia e com a atual Constituição por prever, entre outras medidas, a apreensão de publicações e a censura prévia.
"A lei era inútil na maior parte das vezes, reacionária e autoritária, mas alguns artigos defendiam a profissão e estabeleciam regras mínimas para o relacionamento entre a sociedade e a mídia", afirma Andrade. "Hoje, vivemos essa situação absurda de não ter lei nenhuma. Precisamos de uma legislação específica que defenda a imprensa, mas que também tenha utilidade para o cidadão brasileiro." Desde a revogação da lei, os jornalistas e os meios de comunicação passarem a ser julgados com base na Constituição Federal e nos Códigos Civil e Penal.
O presidente da Fenaj vai além e ressalta que os empresários de comunicação exercem um enorme grau de manipulação em relação a possíveis mecanismos de controle sobre a mídia. "É preciso parar com esse debate atravessado de que discutir normas democráticas para a atuação da imprensa seja discutir censura e controle do Estado. Não é isso", argumenta. "O jornalismo é um serviço de natureza essencialmente pública, tem de estar regulado por medidas e estatutos públicos. O oposto é que é o problema: não ter lei nenhuma."
Ele defende, por exemplo, a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo, proposta que foi rejeitada pela Câmara Federal em 2004. "Os deputados rejeitaram o projeto sem promover nenhum debate público. Isso sim é censura", reclama Andrade. Outra ideia seria resgatar a exigência de formação superior em Jornalismo para o exercício da profissão. A obrigatoriedade do diploma foi abolida em outro julgamento no STF, que entendeu que a exigência feria a liberdade de expressão. Mas a Fenaj e sindicatos de jornalistas propuseram ao Congresso duas propostas de emenda à Constituição (PECs), já em tramitação, para tornar constitucional a obrigatoriedade do diploma.



