Comportamento

Por Daphne Merkin, New York Times,

Anthony Bourdain, Kate Spade e a doença que se esconde atrás do sorriso

Por Daphne Merkin, New York Times,
08/06/2018 11:22
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Anthony Bourdain em foto de 2017. (Foto: Divulgação CNN) | David Scott Holloway

Por melhor que se conheça uma pessoa, o suicídio é sempre um choque, uma violação até, fazendo passar por mentira a nossa convicção de que a existência deve ser valorizada. O fato de o ato de tirar a própria vida poder existir em paralelo à nossa rotina diária – na qual saímos para jantar, fazemos as crianças dormir ou nos preocupamos com a velhice –, sempre me traz à mente um poema de W.H. Auden, “Musée des Beaux Arts”.
Inspirado na própria visão da pintura “Paisagem com queda de Ícaro”, de Bruegel, ele evoca a relatividade da tragédia e o isolamento do desespero: “Sobre o sofrimento, eles nunca se mostraram errados,/Os velhos Mestres: com que precisão entendiam/Sua posição humana: como ela ocupa espaço/Enquanto outra pessoa está comendo ou abrindo uma janela ou simplesmente seguindo seu caminho”.

Todos nós seremos sempre estranhos à dor alheia; entretanto, não há lembrete mais chocante dessa verdade que o suicídio.

A depressão grave, que quase sempre o precede, carrega não só o estigma da doença mental – e, portanto, raramente revelada, mesmo aos mais próximos – como também é um mal relativamente “disfarçável”. Quase nunca deixa rastros; manifesta-se sem o benefício do gesso ou das bandagens. Pode ser camuflada com um sorriso e negada mesmo por quem padece com ela.
Foto: Reprodução
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Por sofrer de depressão aguda desde que era uma garotinha, conheço bem esse paradoxo. Aprendi logo cedo a habilmente me distanciar da minha própria tristeza – afinal, quem quer ficar perto de uma menina infeliz? –, assobiando uma melodia animadinha quando me via entre meus pares e adultos em posições oficiais, como professores e médicos.
Só que nenhum fingimento, por melhor que seja, ameniza o poder da depressão no próprio íntimo. Quando se está sob seu efeito, a impressão que se tem é que o mundo à sua volta se extinguiu e que você está sendo consumido por uma escuridão sem fim.
Eu não conhecia Kate Spade, que se enforcou com uma echarpe vermelha, no próprio quarto, em 5 de junho, aos 55 anos, a não ser através do prisma de seus acessórios insistentemente alegres e extravagantes. Entretanto, tudo em relação a ela e suas criações sugeriam um temperamento alegre, ensolarado, desde a estética de cores fortes à imagem vivaz que projetava.
É difícil relacionar uma mulher de sucesso – pelo menos aparente, com uma carreira promissora, uma família e muito dinheiro – com um desalento tão insinuante e forte a ponto de levá-la a acabar com a vida. Tudo isso ajuda a explicar por que Fern Mallis, ex-diretora do Conselho de Estilistas dos EUA, definiu a morte da amiga como “tão contraditória”. O fato é que aquela garota cheia de vida de Kansas City “sofria de depressão e ansiedade há vários anos”, como revelou Andy, seu marido.
Ainda assim, é de se imaginar se o suicídio seja coisa de caráter; manifestando-se feroz contra todo o instinto de preservação, parece mais uma deformação desse do que expressão de seu estado natural.
Lutando contra o impulso
Eu tenho mais do que um interesse passageiro na questão do suicídio, já que durante ano lutei contra esse impulso. Fui hospitalizada com depressão várias vezes nos últimos 40 anos e tenho duas prateleiras na estante de casa dedicadas a esses dois tópicos – incluindo estudos e histórias sobre o tema escritas por nomes como Jacques Choron e George Howe Colt, além de livros que dissecam o significado da depressão de Robert Burton e Julia Kristeva, entre outros.
Li essas obras em uma tentativa de acabar com o domínio diabólico do suicídio na minha própria imaginação e rastrear a origem o mistério essencial do ato até suas raízes psicológicas – embora também perceba que há um fator da hereditariedade, baseado em estudos feitos com gêmeos idênticos e com adotados, que varia entre 50 e 60 por cento. No meu caso, dada à minha crença de que a forma como fui criada deixou muito a desejar, sempre me confundi com o componente genético, imaginando se ele pode se aplicar a mim – mas como é que alguém pode saber com certeza?
Além de toda essa leitura, escrever um livro de memórias explorando as origens da minha depressão amainou um pouco o fascínio insistente do suicídio. Só um pouco. Ainda tem um lado meu que pende para essa direção radical e violenta quando algo dá errado, que reage como a uma sereia quando ouço falar de alguém que se matou. “Você se safou”, penso.
Às vezes acho que parte daquilo que me segura aqui é o testemunho ao rastro de silêncio que o suicídio deixa. É um ato que não permite volta, não permite que a história seja destrinchada e muito menos oferece uma opção diferente de conclusão. Inspira o choque coletivo, após o qual o vazio – e a ausência – rapidamente é preenchido e cada um volta para a sua vida.
É inevitável que alguns culpem Spade por sua decisão, ou a considerem “egoísta”. Não concordo. É muito difícil para quem não sofre de depressão grave compreender o impacto que ela causa em suas vítimas – como destrói a conexão humana, fazendo-a abrir mão do amor e da necessidade – e a forma como o suicídio pode começar a se fazer imperativo, como uma fuga, e não um ponto final.
Mas eu sinto pelo marido e, acima de tudo, pela filha de treze anos que Spade deixou e que levará esse trauma consigo para sempre – o que me leva a pensar na minha, hoje com 28 anos, que cuida de mim e me ajuda a superar os momentos mais difíceis, mantendo-nos aqui, juntas, para o bem e para o mal, nesta que é a nossa única vida.
* (A autora deste artigo, Daphne Merkin, crítica literária e romancista, escreveu, mais recentemente, o livro “This Close to Happy: A Reckoning With Depression”.)
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