Comportamento

Rafael Macedo, especial para Gazeta do Povo

A invasão das crianças youtubers: para quem elas postam e quais os riscos

Rafael Macedo, especial para Gazeta do Povo
30/10/2017 18:50
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(Foto: reprodução Youtube)

“Oi meus xuxus, lindos e maravilhosos”, assim Roberta Porcides, 10 anos, começa a maioria dos vídeos que posta em um canal do Youtube que passa dos 133 mil inscritos. A pequena, que já nasceu conectada, representa uma legião de crianças que querem fazer sucesso na internet ou simplesmente falar o que pensam e do que gostam. Como elas, o fenômeno é novo e está amadurecendo, o que explica certo deslumbre, uma superexposição e o rápido desinteresse.
A Geração Z é assim – jovens e crianças de hoje – ultra conectada, questionadora e muito preocupada com o que vê e como são vistas nas redes sociais. Ela também é inquieta e impaciente, tem vontade de se expressar, às vezes com certa dificuldade nas relações reais, mas com imensa intimidade no mundo virtual. O que explica a proliferação de canais no Youtube ancorados pelos pequenos.
A desenvolta Roberta fez o primeiro vídeo aos 6 anos. Com a ajuda do pai, Sérgio Roberto Souza do Carmo, criou o canal “De pai para filha”. Naquele espaço virtual, compartilhavam receitas culinária e cozinhavam em família. A irmã mais nova, Raquel, 5, também gostou da ideia. No ano passado, a filha mais velha ganhou “Então Roberta?”, que registra mais de 8 milhões de visualizações. “A Roberta teve o desejo de fazer um conteúdo mais variado, então criamos um canal só para ela”, explica o pai. O antigo foi rebatizado para “Então Raquel?”. Desta forma, foi satisfeita a necessidade de exclusividade das duas.
Com o tempo, o que era só brincadeira ficou profissional. “Gravo dois a três vídeos por semana. A direção, produção, edição e toda parte chata de vídeo é com meu pai. A mãe (Francielli da Fonseca Porcides do Carmo) ajeita a gente e cuida do Instagram. Eu só faço o vídeo e arrumo a bagunça com o pai”, conta Roberta. O assunto varia conforme a época. Brinquedos e brincadeiras são os mais recorrentes.
Para Eliane Basílio, professora do curso de Jornalismo da Universidade Positivo (UP), mestre em educação e socióloga, uma das razões para a proliferação dos canais capitaneados por crianças está na falta de conteúdo em outras mídias. “Temos carência de programação na TV aberta para crianças, algo que foi diminuindo. Esta é uma lacuna que tem sido ocupada pela internet. A empatia quando vêm alguém da mesma idade do outro lado da tela é maior”, explica. Outro fator é a individualização que a tecnologia permite: ver o que interessa no momento desejado.
Revolução digital?
A TIC Kids Online – Brasil 2016, pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet (CGI) e Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade de Informação (Cetic.br), fez um levantamento com quase 6 mil crianças e jovens de 9 a 17 anos. Os números mostram que 69% deste público acessam a internet mais de uma vez por dia. Quando se faz um recorte somente com os indivíduos compreendidos na faixa de renda AB este número sobre para 83%. As entrevistas foram realizadas de novembro de 2016 a junho deste ano.
Preocupada com a inserção digital que se inicia já nos primeiros anos de vida, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) divulgou no ano passado um manual de orientação para médicos, pais, educadores, crianças e adolescentes sobre como lidar com a internet. A limitação com o tempo de uso está entre as principais recomendações. De acordo com a entidade, crianças entre dois e cinco anos devem ficar expostos aos conteúdos digitais por no máximo uma hora por dia. Com relação à interação no ambiente virtual, o documento sugere conversar sobre valores familiares e regras de proteção social para o uso saudável, crítico, construtivo e pró-social das tecnologias usando a ética de não postar qualquer mensagem de desrespeito, discriminação, intolerância ou ódio.
Neste sentido, Eliane reforça a importância do acompanhamento dos responsáveis. “Crianças que geram conteúdo encontram na internet uma ferramenta que pode ser utilizada no processo de aprendizado de linguagem. Porém, isso deve ser construído com embasamento pedagógico, sempre com supervisão de um adulto, com incentivo ao ponto de vista crítico dos pais”, ressalta a professora da UP.
Na avaliação da especialista, não é bem isto que está ocorrendo na imensa maioria dos canais. “Eles são voltados somente para o entretenimento e muitos caem na lógica do consumo, ser celebridade, ser importante, ter status, ser visto, adorado e exaltado”, argumenta. Para Eliane, o cenário ainda está em desenvolvimento, o que não transforma as crianças e jovens em revolucionários digitais, mas também não se resume tudo em futilidades. O recado é: os responsáveis precisam estar atentos quanto ao engajamento digital dos pequenos, mas entender que acima de tudo são crianças, que estão passando por uma fase de aprendizado e transição.
Comentários maldosos incomodam
As primas Luísa Silva, 12, e Isabela Beatriz Schorr, 11, são prova desta inconstância. As duas criaram canais no Youtube e contas no Instagram. Depois de alguns meses postando vídeos com regularidade, a frequência das postagens caiu bastante nos últimos tempos.
“Faço vídeos desde pequena (5 anos) e comecei a postar aos 7”, conta Isabela. Recentemente, porém, ela se dedica somente às gravações, as publicações, praticamente, pararam de acontecer. A mãe, professora e pedagoga, ficou receosa no início. “Vimos que os vídeos eram inocentes e positivos, por isso passamos a apoiar, mas sempre com supervisão”, afirma Cintia Beatriz Nass. Ela conta que na escola localizada no Boqueirão, onde leciona para alunos de 9 e 11 anos, são poucas as crianças que geraram conteúdo digital. Ela admite que a dinâmica dentro da sala de aula mudou com a popularização da internet entre os pequenos. “Os alunos são mais interessados, percebe-se que buscam mais informações. São mais críticos e desenvoltos para falar”, reconhece.
Com a intenção de alegrar os outros e também inspirada por ídolos do Youtube, Luísa também teve sua fase de aspirante a apresentadora digital. Mas um episódio diminuiu o ímpeto dela. “Uns meninos da minha sala descobriram meu canal, eles ficaram vendo os vídeos e tirando sarro”, revela desapontada. Agora posta vídeos somente por meio do Stories, ferramenta do Instagram – plataforma originalmente para postagem de fotos – que apaga as postagens automaticamente após 24 horas. “Só me incomodo quando os meninos da sala fazem comentários para me chatear”, faz coro a prima Isa.
Para tentar blindar a filha, Sérgio fica de olho nas interações dos inscritos no canal de Roberta. “Nos vídeos muito vistos, sempre tem comentários maldosos, bloqueio a maioria. Fico triste porque sei que quase sempre é uma criança que usa a internet para agressividade. Mas bola pra frente”, resigna-se.
Visto por milhões
O estudo YouTube Insights 2017 revela que a plataforma de compartilhamento de vídeos alcançou 98 milhões de usuários mensais no Brasil. Para criar uma conta, o usuário deve confirmar que tem, no mínimo, 13 anos. Crianças que não têm a idade mínima precisam de autorização dos pais.
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