Comportamento

Beatriz Menezes Amaro, especial para Gazeta do Povo

Edições artesanais de livro estão em alta; saiba como publicar o seu

Beatriz Menezes Amaro, especial para Gazeta do Povo
21/08/2018 17:00
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Foto: Beatriz Menezes Amaro | Felipe Rosa

Enquanto espera as caixas de leite secarem no varal, Jesus Bajo, representante de vendas de produtos hospitalares, costura alguns exemplares de livros diversos. “Não gosto dos grampeados; inventei uma maneira de costurá-los”, diz. A linha também é utilizada para fazer um marcador de páginas enfeitado com pingentes. “É tudo feito à mão”.
Bajo, imigrante espanhol, aprecia livros. Escreve poemas desde pequeno. A filha, Beatriz, herdou a paixão: estudou Letras e, tal qual o pai, é poetisa e escritora.
Pai e filha comandam a primeira editora cartonera do Paraná, sediada em Londrina, a Rubra Cartoneira Editorial. Ao contrário da grafia argentina, onde surgiu o movimento cartonero, a Rubra leva a letra i no nome “porque somos brasileiros e lutamos pela nossa cultura”, afirma Bajo, que chegou ao país aos quatro anos de idade.
Por definição, os livros produzidos pelo movimento cartonero, que surgiu em 2003 como uma alternativa diante da crise econômica, são artesanais e têm as capas feitas de papelão. A Rubra, no entanto, trabalha com caixas de leite. “Quando Beatriz propôs que começássemos uma editora cartonera, eu topei, contanto que não usássemos papelão. O trabalho de reciclagem começa aí”, explica Bajo.
O idealizador da Rubra, segundo Beatriz, foi o poeta Marcelo Ariel. Em 2012, depois de conhecer a Dulcineia Catadora, primeira editora cartonera do Brasil, Ariel levou a ideia à amiga londrinense, e enviou-lhe um livro produzido artesanalmente. “Era bem rústico, com capa feita pelos filhos dos catadores, e maravilhoso”, afirma a escritora. “Ariel sugeriu que eu trouxesse o movimento para cá, mas eu não tinha ideia de como fazer. Falei com meu pai, que me disse sentir vontade de fazer livros com caixas de leite, e a coisa tomou forma a partir daí.”

Livros em materiais diversos

Em pouco tempo a Rubra lançava cinco títulos: Não Tenho Pena do Poema, de Reynaldo Bessa; Cosmogramas, de Marcelo Ariel; Rio São Francisco, de Chico César; e Domingos em Nós, de Beatriz. Cada um dos 250 exemplares tem capa exclusiva confeccionada em processos distintos – de colagem à pintura em materiais que variam de tecido a filtro de café, não há espaço para mesmice.
Beatriz e seu pai, Jesus Bajo, da Rubra Cartoneira Editorial: livros em caixas de leite. Foto:  Beatriz Menezes
Beatriz e seu pai, Jesus Bajo, da Rubra Cartoneira Editorial: livros em caixas de leite. Foto: Beatriz Menezes
Para além da montagem das capas, trabalhosa por si só, manter uma editora cartonera é tarefa árdua, especialmente no tocante à logística. Pai e filha bancam a produção dos livros, cujas páginas são impressas em uma gráfica convencional. As capas são concebidas em “mutirões” formados por amigos e familiares, mas os materiais utilizados também são adquiridos pela dupla.

Quanto custa?

O valor dos exemplares varia de R$ 10 a R$ 35. Os direitos autorais dos escritores são pagos em livros, e a Rubra fica com o lucro das vendas. “Mas a editora não se sustenta”, afirma Bajo. “É nosso dinheiro pessoal que cobre tudo. É difícil porque publicamos autores desconhecidos; apesar da divulgação, as pessoas não compram”. De acordo com Beatriz, “queremos lançar escritores novos. Em Londrina, sobretudo, sentimos uma dificuldade de acesso às vendas. Apesar de ser uma cidade universitária, com grande circulação de pessoas, o interesse é pequeno”.
A ideia de desistir, no entanto, não passa pela cabeça. “Desistir não é uma opção porque não houve um início efetivo e produzimos quando há tempo e dinheiro”, afirma Beatriz. “Ela produz, eu produzo, nem que seja para lançar os nossos”, diz Bajo, autor de A Cara Je (2017).
Foto: Beatriz Menezes Amaro
Foto: Beatriz Menezes Amaro
Para Beatriz, “viver disso é uma bela utopia. Amo trabalhar com livro. É claro que o trabalho é pesado, especialmente quando se tem um prazo, e, além disso, é preciso garantir que haverá retorno, senão não vale a pena. Isso desacelera o processo”. Bajo afirma que “o sonho, no momento, é que a editora se pague para que possamos lançar mais livros. Se pudéssemos largar tudo para viver só da Rubra, seria incrível, mas agora o objetivo é que consigamos subsistir”.

Experimentações

A poucos metros da residência da família Bajo, nos fundos de uma casa espaçosa e aconchegante, o tipógrafo Silvio Valduga trabalha na impressão do livro Novos Contos, escrito pelo cineasta Rogério Sganzerla (1946-2004).
O espaço hospeda a vila cultural Grafatório, uma associação sem fins lucrativos que reúne designers, artistas visuais e entusiastas das artes gráficas em torno da difusão da cultura. Por trás do coletivo estão o jornalista Felipe Melhado e o designer gráfico Pablo Blanco, que, em outubro de 2017, incluíram a produção de livros artesanais em seu rol de experimentações.
Foto: Beatriz Menezes
Foto: Beatriz Menezes
O primeiro título publicado pelo Grafatório foi A Hora da Lâmina (2017), de Paulo Leminski (1944-1989). À época, o coletivo trabalhava com edições de gravuras, cartazes e zines, mas a ideia de oficializar um selo já rodeava a cabeça de Melhado. “Queríamos fazer uma pequena editora para ter publicações mais elaboradas. Eu havia encontrado os oito últimos textos do Leminski, publicados em vida, em uma coluna da Folha de Londrina. Era um material legal e que daria um volume interessante”, explica. O último dos textos-ninja – nome dado pelo próprio Leminski aos seus escritos curtos e ágeis – data de 2 de junho de 1989. O escritor morreu em Curitiba cinco dias depois.

O processo de produção de 300 exemplares durou um ano. De acordo com Melhado, “o intuito era fazer o primeiro título da maneira mais difícil possível: imprimir em tipos móveis, encadernar artesanalmente, costurar à mão, revestir em tecido. Nunca tínhamos feito nada parecido e queríamos experimentar”. Deu certo. Os poucos exemplares restantes estão disponíveis no site do Grafatório.

O sucesso do primeiro título inspirou o lançamento do segundo livro, Visiopoemas (2018), do gravurista paulistano Paulo Menten. Em meio a pesquisas sobre a vida de Menten, Melhado encontrou poemas concretos escritos na década de 1950, no início do concretismo. O jornalista afirma que “a ideia de publicar um trabalho concretista era fantástica. A partir daí, começamos a pensar no formato”.
“Este é o diferencial dos métodos artesanais: encontrar o formato”, afirma Pablo Blanco. “É preciso buscar uma maneira de tornar os textos mais potentes. Uma publicação como essa não pode ser feita numa gráfica convencional. Para fazermos alguma coisa à altura do que imaginamos, nós mesmos temos que produzir”. O conteúdo do livro é que dita o design – no caso dos poemas concretos, propõe-se a valorização da poesia. Os exemplares foram impressos em tipografia com composição manual e encadernados em cinta com folhas soltas e livreto grampeado.
O Grafatório trabalha, neste momento, na produção de Novos Contos, de Sganzerla. O livreto foi escrito pelo cineasta aos sete anos de idade, em 1953, e a última cópia original perdeu-se recentemente. Foi o pequeno Sganzerla que levou o compilado de contos infantis a uma tipografia para que tomasse corpo. O título será lançado em breve graças a uma parceria com a Miríade Edições, de Joinville (SC).

Processo tipográfico

Os contos, impressos em páginas soltas, serão colocados em um envelope junto de uma carta da mãe do cineasta, Zenaide, escrita especialmente para a edição. O processo de produção foi essencialmente tipográfico. “Nós nos perguntávamos como iríamos gerar interesse por esse livro são simples, em que o próprio texto é o personagem principal. O leitor entrará em contato com um objeto feito pelo autor, o que cria uma relação bem pessoal, por isso a carta escrita pela mãe”, explica Blanco.
Por ora, os livros artesanais têm sido válidos para o Grafatório, que já engatilhou a produção de outros títulos. “O teste de vendas está em processo”, afirma Melhado, “mas encontramos uma maneira de escoar o que produzimos: circular. As feiras são muito importantes para as publicações independentes e, dependendo do evento, a edição se paga ali”.
O intuito, daqui em diante, é “produzir cada vez mais para que possamos reinvestir o dinheiro, envolver mais pessoas no processo e andar mais rápido”, diz Blanco.

Técnicas artesanais

Em Curitiba, onde, de maneira geral, a cena cultural é mais difusa e potente, três projetos se destacam na produção de livros artesanais: a editora Arte & Letra, comandada pelos irmãos Frederico e Thiago Tizzot, e dois empreendimentos dos jornalistas Téo Souto Maior e Gustavo Ferreira, a Banquinho Publicações e o Estúdio Invertido.
A Arte & Letra surgiu em 2001 por iniciativa de Frederico. “Foi a primeira coisa que fiz em termos de publicação. Em 2004, meu irmão se juntou a mim e começamos a produzir mais. Crescemos bastante e, em 2006, abrimos uma livraria. Em 2011, mudamos de endereço e, além da livraria, incorporamos um café”, diz.
A ideia de publicar livros artesanais surgiu a partir de pesquisas de Frederico, que queria experimentar elementos diferentes do design tradicional. “Queria trabalhar com tecido, mas não achei quem fizesse. Encontrei novos métodos e o conceito foi mudando. Resolvi produzir o livro todo artesanalmente. No fim, fizemos uma pequena coleção com três títulos e todos os exemplares foram feitos com técnicas artesanais que eu tive que aprender. Foi a partir daí que começamos a pensar na possibilidade de efetivamente trabalhar com isso”, conta.
A editora lançou uma segunda coleção de três títulos, com 250 exemplares cada, que demorou um ano para ficar pronta. No começo, os livros eram produzidos em linotipia, mas, com o aumento das demandas e o tempo curto para efetuá-las, Frederico teve de repensar os processos. “Tudo isso foi feito em paralelo com a produção industrial, os livros ‘normais’, porque há certa dificuldade em tornar a produção artesanal viável em termos de mercado. Fui procurar maneiras de colocar os livros em circulação sem gastar tanto tempo e de forma rentável”.
O produto final vira uma obra de arte. Foto: Beatriz Menezes Amaro.
O produto final vira uma obra de arte. Foto: Beatriz Menezes Amaro.
Com isso em mente, o editor entrou em contato com fornecedores e deparou-se com a risografia, “uma máquina com produtividade e tamanho bons”. Em 2017, a Arte & Letra montou um ateliê próprio voltado à produção artesanal – a impressão é feita em risografia e é possível explorar recursos como xilogravura e serigrafia, além de encadernar e costurar os exemplares à mão. Segundo Frederico, “acompanhamos a produção de perto, conferimos a qualidade, controlamos a tiragem e produzimos mais em menos tempo e com menor custo. Agora as coisas saem como a gente quer”.
A editora tem enfrentado um problema que muitos gostariam de ter: a busca pelos livros é enorme. “Estamos reimprimindo alguns títulos. Está muito corrido, o que é ótimo”, afirma. Mesmo assim, o plano é expandir a produção. Recentemente, a Arte & Letra lançou um selo exclusivo para novos autores. “Já nos procuraram e vamos continuar produzindo. A ideia é ampliar a pequena gráfica que construímos e ter cada vez mais livros artesanais”, explica o editor.

Diferentes formatos

A ligação dos jornalistas Téo Souto Maior e Gustavo Ferreira com livros também é antiga. Durante a graduação, a dupla produziu um livro-reportagem sobre a Ocupação Marumbi e, desde então, envolveu-se com processos gráficos. “Procurávamos formatos diferentes de livros como consumidores, mas nos interessávamos pela ideia de produzir alguma coisa”, conta Souto Maior.
Em 2008, os amigos fundaram uma agência de produção de conteúdo, a Banquinho Publicações, e, em 2011, ministraram uma oficina de encadernação artesanal. Em 2014, lançaram o primeiro livro artesanal, Será que é Poesia?, de Laércio Souto Maior, pai de Téo. As experiências deixaram a dupla inquieta e bastante interessada em produzir outros títulos, mas, tal qual os irmãos Tizzot, os jornalistas tiveram dificuldades para terceirizar os serviços.
“Foi aí que, em 2015, estudamos, pesquisamos e resolvemos montar o Estúdio Invertido, que conta com três eixos: serigrafia em tecido e em papel, encadernação artesanal e tipografia”, explica Souto Maior. “O estúdio surgiu a partir do livro enquanto objeto, mas, com o passar do tempo, ele se transformou em um espaço de confecção gráfica artesanal. Fazemos muitos materiais para terceiros: convites, cartões de visita, capas de livros, cadernos, etc”.
Simultaneamente, a Banquinho deixava de lado a função de agência e voltava seus esforços à consolidação de um catálogo de livros artesanais. Hoje, os dois projetos incluem a produção de títulos: a Banquinho como editora e o Estúdio Invertido na parte de produção gráfica, normalmente em parceria com outras editoras.
De acordo com Souto Maior, “nosso desejo é poder fazer livros artesanais incríveis com frequência, com excelentes autores, experimentando formatos e soluções gráficas dentro da tipografia, serigrafia e encadernação artesanal”.
SERVIÇO
Onde encontrar os títulos produzidos pelas editoras artesanais
Rubra Cartoneira Editorial – www.rubra-c-editorial.blogspot.com
Grafatório – www.grafatorio.com
Arte & Letra – www.arteeletra.com.br e Al. Dom Pedro II, 44, Curitiba
Banquinho Publicações – www.banquinhopublicacoes.com.br
Estúdio Invertido – www.estudioinvertido.com.br
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