Comportamento

Flávia Schiochet

Pais de crianças autistas desenvolvem formas criativas para se comunicar com os filhos

Flávia Schiochet
22/09/2018 12:00
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Lucas Tannuri estimula Marina, sua filha de sete anos, com música. Na foto, com o caçula Gael. Foto: Arquivo pessoal. | Lucas Tannuri

Brincar com as crianças é uma atividade que revela muito dos pequenos: é na brincadeira que elas elaboram histórias próprias, inventam diálogos, interagem e se desenvolvem. Para pais de crianças autistas, participar desse momento é ainda mais importante. A interação que se dá ao brincar pode ser um canal de comunicação com os filhos e cada família encontra diferentes estratégias para estimular essa atividade com as crianças com transtorno de espectro autista.
Muitas se dão por meio de atividades cotidianas, como ouvir ou tocar uma música, assistir a um filme juntos ou fazer a lição de casa. “O autista tem um assunto de muito interesse, chamamos de interesse restrito. Pode ser bandeiras, jogo de futebol de botão, dinossauros”, exemplifica a psicóloga Yanne Ribeiro. “É um caminho bacana para a interação, eles respondem muito melhor”, aconselha.
Combinado ao tratamento e terapias, o estímulo — seja em forma de brincadeira ou não — é uma importante atividade para o desenvolvimento das crianças e conexão entre pais e filhos. O fotógrafo e ilustrador Lucas Tannuri, por exemplo, passou a desenhar com objetos que a filha, Marina, de sete anos, lhe entregava. Às vezes, ela dava ideias do que ilustrar e em outros momentos, Lucas criava a cena para mostrar mais possibilidades à Marina. A brincadeira entre os dois vai virar um livro viabilizado por financiamento coletivo.
O livro "O grande desafio das pequenas coisas" será publicado por meio de financiamento coletivo por Lucas Tannuri. Foto: Divulgação
O livro "O grande desafio das pequenas coisas" será publicado por meio de financiamento coletivo por Lucas Tannuri. Foto: Divulgação
Antes de Marina demonstrar interesse pela dinâmica do desenho, Lucas e a esposa Larissa aproveitaram outras brechas para estimular a expressão da menina, como a música e as palavras. Para fazer a lição de casa, o casal costuma imprimir uma série de palavras e dispor sobre a mesa para que Marina, que tem dificuldade para escrever, pudesse compor as respostas.
Larissa Tannuri e a filha, Marina, brincando de "charada" com as palavras. Pais notaram que a filha queria brincar com as palavras impressas e inventaram a brincadeira. Foto: Lucas Tannuri/Divulgação
Larissa Tannuri e a filha, Marina, brincando de "charada" com as palavras. Pais notaram que a filha queria brincar com as palavras impressas e inventaram a brincadeira. Foto: Lucas Tannuri/Divulgação
A vontade que crianças têm de ficarem próximas aos pais no dia a dia também pode ser aproveitado. A escritora Larissa Ribeiro, mãe de Aline, hoje com 21 anos, teve acesso a muitas memórias e sentimentos da filha a partir dos desenhos animados e das músicas que ouvem juntas. “Não vem uma história pronta, vem um quebra-cabeça. Vamos juntando os momentos e falas, as pequenas impressões dela”, explica Larissa.
Por oito anos, ao final do dia, Larissa e Aline sentavam-se à mesa juntas, cada uma com seu computador, e trabalhavam na “história da família”, como se referiam. Havia momentos em que Aline queria saber o que a mãe tinha escrito. “Eu lia e ela fazia algum comentário. Dessa frase eu desenvolvia um texto”, conta Larissa. Às vezes, durante o processo de escrita, Aline pedia à mãe para ouvir alguma música. Em um desses momentos, Larissa deu o play na canção “Estou Aqui”, interpretada por Jota Quest e que faz parte da trilha sonora do filme “Planeta do Tesouro”:
“Ninguém sabe que
Estou aqui
Mas sei tudo que eu quero viver
Dos meus sonhos vou fazer
Um caminho traçado por mim
Por que todos querem controlar
Qualquer coisa que eu pensar
Se pra eles não estou aqui”
“Nessa hora ela falou ‘olha, mamãe, é a Aline’”, rememora Larissa. “A música falou como ela se vê, que é quando as pessoas falam dela como se ela não estivesse ali. Quanta evolução psicológica está no entendimento dela para ela se perceber naquela letra”, completa. Esse e outros relatos estão em seu livro “Entre dois mundos: uma história de amor”, recém-lançado em Curitiba, Brasília e na Bienal do Livro de São Paulo.
Larissa Ribeiro, à direita, autografa o livro que lançou junto da filha Aline, de 21 anos. Mãe e filha passaram oito anos escrevendo juntas sobre o dia a dia da família. Foto: Divulgação
Larissa Ribeiro, à direita, autografa o livro que lançou junto da filha Aline, de 21 anos. Mãe e filha passaram oito anos escrevendo juntas sobre o dia a dia da família. Foto: Divulgação
Para a autora, a sintonia fina que pais e filhos criam é a chave para perceber quando usar o lúdico.

“O autista trabalha com a concretude e não o metafórico. Mas, ao mesmo tempo em que eles têm uma literalidade, eles trafegam pela experiência fantasiosa”, diz a autora Larissa Ribeiro.

Ela lembra de quando assistiram ao filme Titanic: “Ela falava que a primeira parte era a Aline feliz e a segunda parte, em que o navio afunda, a Aline triste. Ela comparava as emoções dela com o navio afundando”, descreve Larissa.

Aplicativo facilita comunicação

O transtorno do espectro autista abarca realidades diferentes entre si. Há casos com dificuldade em coordenação motora e de fala, que podem comprometer o desenvolvimento na comunicação, socialização e comportamento, e também de pessoas cujo diagnóstico vem apenas na idade adulta. “A dificuldade da comunicação está justamente no elo da troca comunicativa. Essa ideia de perceber o outro, de pedir algo”, explica Yanne.
Ainda que no seio familiar as necessidades do dia a dia sejam percebidas pela convivência, a comunicação imediata facilita, e muito, o cotidiano das famílias e a socialização da criança em ambientes como a escola. Uma das ferramentas mais usadas é uma espécie de fichário, em que a criança usa figuras para se comunicar e pedir, por exemplo, um copo de água ou avisar que precisa ir ao banheiro. “Para crianças não verbais temos de usar meios em que ela consiga se comunicar. Há inúmeras estratégias de comunicação alternativas, como figuras físicas e o uso de aplicativos”, diz Yanne.
Wagner, Gabriel e Grazyelle Yamuto: cotidiano da família e dificuldades de Gabriel para falar fizeram os pais desenvolver um aplicativo, o Matraquinha. Foto: Arquivo pessoal
Wagner, Gabriel e Grazyelle Yamuto: cotidiano da família e dificuldades de Gabriel para falar fizeram os pais desenvolver um aplicativo, o Matraquinha. Foto: Arquivo pessoal
Para facilitar a comunicação do filho Gabriel, de nove anos, o pai Wagner Yamuto criou junto da esposa Grazyelle e do irmão programador Adriano o aplicativo Matraquinha. O app está disponível para iOS e Android e conta com mais de 40 figuras, divididas nas categorias emoções, necessidades, comida, diversão e roupa. Lançado no final de julho, a ferramenta já tinha ultrapassado os 20 mil downloads. Conforme o número de usuários cresce, mais figuras são solicitadas. A cada atualização do aplicativo, mais atividades são incluídas.
O Matraquinha, no entanto, não substitui o fichário ou outra ferramenta usada em terapia. Enquanto no fichário a criança monta uma oração com sujeito, verbo e complemento, no aplicativo, a criança clica na figura “leite” e o aplicativo fala “quero beber leite”.
“Usamos a metodologia do fichário, mas simplificamos o uso, porque há crianças que não tem acesso à terapia e gostaríamos que elas possam usar também“, justifica Wagner. Pela simplicidade do aplicativo, outras crianças com dificuldade de fala podem usar, como as com paralisia cerebral. Wagner recorda de uma mãe que escreveu para ele no primeiro mês do aplicativo relatando que sua filha, com paralisia cerebral, havia avisado, pela primeira vez, que precisava ir ao banheiro.
Uma das telas do aplicativo Matraquinha, criado por Wagner Yamuto para facilitar a comunicação do dia a dia de crianças com dificuldade de fala. Imagem: Divulgação
Uma das telas do aplicativo Matraquinha, criado por Wagner Yamuto para facilitar a comunicação do dia a dia de crianças com dificuldade de fala. Imagem: Divulgação
A dificuldade em se expressar e conseguir pedir o que quer resulta em crises de choro e irritação, a resposta natural de crianças não verbais que querem comunicar incômodos. A aceitação de mudanças de planos, chamadas de flexibilidade cognitiva, também pode ser uma fonte de frustração para crianças autistas e gerar as mesmas reações. “Imagine que você tem planos de ir ao parque amanhã. Mas aí chove e você precisa pensar em outra saída. O autista tem muita dificuldade de sair do plano, criar novas estratégias. Tem quem tenha dificuldades absurdas e entra em crise”, explica Yanne.
“Depois de um ponto, eles não sabem mais por que estão nervosos e chorando. Entram em uma espiral de angústia, não encontram a porta de saída. Não adianta dar o que eles queriam porque eles precisam ser consolados, sair daquele lugar. Muitas vezes a gente não sabe o que foi que deu o disparo”, diz Larissa. Para Tannuri, há mais similaridade entre autistas e não autistas do que muita gente nota: “Cada um de nós tem uma visão de mundo particular e interage de forma particular. E o que difere para a minha filha é como ele se expressa, porque não é tão clara às vezes”, explica.
Para os pais, a finalidade de toda a intervenção, seja comportamental ou emocional, é uma só: fazer com que o autista esteja integrado. Larissa lembra das sessões de autógrafo ao lado de Aline: “Naquele momento, estávamos vivendo o melhor que a inclusão social pode ser. Aline sentiu que pertencia àquele mundo exatamente igual a mim”.
Serviço
Livro “Entre dois mundos: uma história de amor”, de Larissa Ribeiro (publicação independente, R$ 49,90). Encomendas pelo e-mail: entredoismundosamor@gmail.com
Aplicativo Matraquinha. Download gratuito para sistemas Android e iOS. Mais informações no site.
Livro “O grande desafio das pequenas coisas”, de Lucas Tannuri. Em financiamento coletivo até 18 de setembro (colaboração a partir de R$ 35).

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