Comportamento

Anderson Gonçalves, especial para a Gazeta do Povo

Médico se torna o primeiro reitor tetraplégico de uma universidade federal brasileira

Anderson Gonçalves, especial para a Gazeta do Povo
19/12/2018 17:00
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Antonio Lucas da Nóbrega, novo reitor da UFF, com o vice Fábio Passos na cerimônia de posse realizada no mês de dezembro. (Divulgação) | Joao Fanara

Emoções nunca faltaram na vida de Antonio Claudio Lucas da Nóbrega. Desde criança, quando foi campeão mirim de judô do estado do Rio de Janeiro, até a vida adulta, quando já na condição de médico, fez parte da delegação brasileira que disputou os Jogos Olímpicos de Atlanta, nos Estados Unidos, em 1996. O dia 6 de dezembro foi mais um a engrossar esse repertório quando, aos 52 anos idade e 27 de vida acadêmica, tomou posse pela primeira vez no cargo de reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói (RJ), uma das maiores instituições de ensino superior do Brasil.
Que essa é uma conquista importante para Antonio Claudio, disso não há dúvidas. Como, acredita-se, seja para qualquer pessoa que assume um cargo de tal magnitude. Mas no caso específico do médico e professor universitário, há um fato que amplia a importância dessa conquista e fez de sua posse um evento histórico: trata-se da primeira pessoa tetraplégica a assumir a reitoria de uma universidade federal no Brasil.
O início do mandato à frente da UFF é o mais recente capítulo de uma história que começou duas gerações antes, na década de 1920. Antonio Claudio seguiu os passos do avô, que se formou em Medicina em 1931, com a primeira turma da Faculdade Fluminense de Medicina, que deu origem ao curso da UFF pelo qual o novo reitor se graduou em 1983. Em 1990, começou uma nova etapa. Aprovado em primeiro lugar no concurso público da instituição, tornou-se professor do Instituto Biomédico.
A trajetória bem-sucedida quase foi interrompida em 1999. Antonio Claudio retornava para casa, no Rio de Janeiro, após participar de um jantar em comemoração à aprovação de um orientando no mestrado. No caminho, criminosos armados abordaram o veículo do professor. No assalto, dispararam 11 tiros contra o automóvel. Um deles atingiu a medula espinhal, deixando Antonio tetraplégico. O episódio foi traumático, mas não impediu que, após a recuperação, ele continuasse fazendo aquilo que mais gostava: lecionar e praticar esportes.
Em maio deste ano, a chapa “Juntos pela UFF”, encabeçada por Antonio venceu a disputa pela reitoria, com 51,2% dos votos válidos. O cargo em si pode ser uma novidade para o novo reitor, mas a rotina e suas atribuições, nem tanto, já que nos últimos quatro anos ele ocupou o posto de vice-reitor. Casado e pai de dois filhos, especialista em Medicina Desportiva e cardiologia, doutor em Ciências Biológicas, o médico e professor é agora responsável por gerir uma estrutura de 63 mil alunos de graduação e pós-graduação, distribuídos por 133 cursos e nove municípios fluminenses.

Acessibilidade em pauta

Antonio Claudio conversou por telefone com a Gazeta do Povo na véspera da cerimônia de posse. Sobre o fato de ser o primeiro reitor tetraplégico de uma universidade federal, acredita que isso tem um significado maior para a sociedade, não tanto para ele.

“Tive essa lesão há quase 20 anos, minha vida profissional se desenvolveu em grande parte com ela. Acredito que isso seja importante para a UFF e a sociedade de modo geral se o fato de ser reitor for um indicador de que os indivíduos podem alcançar posições na sociedade, independente de sua condição física. Se essa for a mensagem que vou transmitir, ficarei satisfeito”, afirma.

Em termos práticos, a meta do novo reitor é melhorar a acessibilidade em uma instituição que já é referência nesse sentido. Desde 2006 a universidade conta com a Divisão de Acessibilidade e Inclusão, a Sensibiliza UFF, responsável por planejar e executar ações de inclusão e acessibilidade na área de graduação.
“Eu consigo experimentar na prática as dificuldades no que se refere à mobilidade. A universidade é igual ao Brasil, existem muitos prédios antigos, onde existe a necessidade de melhorias e uma dificuldade maior para adaptação. Mas acredito que minha experiência possa servir para que possamos avançar de maneira geral, no sentido de inserir o deficiente na sociedade”, diz. De acordo com ele, já foi feito um mapeamento na gestão anterior, para que nos próximos anos sejam solucionados os pontos críticos de acessibilidade.
Mais do que inclusão física, Antonio garante priorizar também a inclusão social, conforme ressaltou em seu discurso de posse. “Aqui, dois terços dos alunos têm origem em famílias com renda média de até um salário mínimo e meio, ainda que no imaginário social exista o discurso de que a universidade pública seja elitizada. É extremamente relevante o papel social da universidade do ponto de vista do empoderamento dessas pessoas na própria vida. Ela não só forma, mas também transforma. E, vejam, inclusão não é antítese de excelência. Ao mesmo tempo em que crescemos e incluímos, a qualidade acadêmica da universidade cresceu”.
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação

Paixão pelo esporte

Assim como a medicina e a vida acadêmica, o esporte também tem um lugar especial na vida e na carreira profissional de Antonio Claudio. Além do judô, pelo qual foi campeão na infância, já praticou triatlo, vôlei, basquete e natação. “Nado até hoje”, conta, destacando uma das atividades que ajudaram a superar o trauma do incidente de 99. A formação em Medicina Desportiva abriu as portas para participar de alguns dos eventos esportivos mais importantes em âmbito mundial.
Antonio esteve nas delegações brasileiras que participaram dos Jogos Panamericanos de Indianápolis (EUA, 1987) e Rio de Janeiro (2007), das Olimpíadas de Inverno de Nagano (Japão, 1998) e nos Jogos Olímpicos de Atlanta (96). Entre os atletas com os quais trabalhou está o nadador Luiz Lima, medalhista de ouro nos Jogos Panamericanos de Winnipeg (Canadá, 1999) e eleito deputado federal pelo PSL do Rio nas últimas eleições.

“Criamos uma rede de conhecimento com atletas e profissionais do meio esportivo que se mantém até hoje”, destaca.

Na vida acadêmica, jamais sossegou. Entre cursos de aperfeiçoamento e pós-graduação realizados no Brasil e no exterior, publicou quase duas centenas de artigos, capítulos de livros e foi autor de cinco livros. Dentro da UFF, criou em 1994 o Laboratório de Ciências do Exercício (LACE), sede de diversas pesquisas relacionadas à fisiologia do exercício e cardiologia, do qual é o coordenador. Chefiou departamento, foi pró-reitor e vice-reitor até chegar ao cargo máximo da instituição.
À frente da UFF, o novo reitor terá pela frente um desafio comum a praticamente todas as instituições públicas de ensino superior pelo Brasil: fazer frente à crise financeira.“A dificuldade orçamentária é um limitador e gera muita pressão, pela necessidade de expandir e cumprir as obrigações financeiras. Estamos fazendo um trabalho interno, aperfeiçoando mecanismos de gestão, revendo contratos, redefinindo processos e enxugando a estrutura”, afirma. Tarefa difícil, mas não impossível, ainda mais para quem já superou uma batalha pela própria sobrevivência. “Vou continuar trabalhando do meu jeito. Não sou político, sou acadêmico, professor e pesquisador remunerado pelo povo.”
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