Comportamento

Katia Brembatti

Um superaniversário, forró e 5 times de futebol: um dia na copa dos índios

Katia Brembatti
14/07/2018 17:00
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A mãe de Everton caprichou nos trajes do menino, que durou pouco mais de meia hora por causa do calor. Foto: Albari Rosa/Gazeta do Povo. | Gazeta do Povo

Há mais de uma década que não se via uma criança correndo pela aldeia Karaguata Poty. “A última foi a minha caçula, que hoje está com 24 anos”, conta Florinda Rodrigues. Mas a alegria infantil voltou há um ano, com a chegada de Everton. Além da celebração familiar, o nascimento marca a esperança de manutenção da cultura dos índios Guarani que moram em Pontal do Paraná, no Litoral.
Para comemorar o primeiro aniversário do neto, o cacique Irineu Rodrigues, de 48 anos, decidiu que faria uma festança, preparada ao longo dos últimos meses. Cortou – na lua minguante, para “não pegar bicho” – taquaras finas e as colocou para secar. Rachadas ao meio, foram cuidadosamente amarradas uma a uma para servir de parede para o salão de festas, de quase 100 metros quadrados, construído especialmente para a festa.
Fotos: Albari Rosa/Gazeta do Povo.
Fotos: Albari Rosa/Gazeta do Povo.
O tamanho do espaço precisava fazer jus à expectativa de trazer índios de várias aldeias. Do Rio Grande do Sul veio um ônibus. Também parentes paulistas e de outros pontos do Paraná apareceram. Aproximadamente 100 pessoas se reuniram para os dois dias de festa. Três bolos foram servidos, um deles com o símbolo do São Paulo Futebol Clube e outro do Internacional – dando pistas da importância que o esporte tem para eles. Os gremistas presentes preferiram o terceiro, azul, a princípio destinado apenas para as crianças.
Everton ainda não fala ou anda. Xodó de todos, está sempre no colo de alguém. Para desgosto da vó Florinda, não gosta de se sujar. “Não fica sem meia no pé de jeito nenhum”, conta. Mas naquele dia foi diferente. Usou um sapato de verniz, lustroso. Para completar o traje, terno, camisa e gravata. “Queria ele bonito para as fotos”, conta Lúcia, a mãe, que foi até Paranaguá para comprar a roupa. “Valeu a pena”, resume. Everton ficou menos de meia hora paramentado. Dá para entender. Fazia calor e a roupa era evidentemente desconfortável.
Na aldeia não há água encanada ou rede elétrica. Sistemas de energia solar garantem lâmpadas e alguns eletrodomésticos, como rádios e televisores – usados, nesta época, principalmente para saber o que acontece na Copa do Mundo. A festa foi no final de semana, logo depois da eliminação da seleção brasileira pela Bélgica. “Perdeu a graça depois que o Brasil perdeu”, conta Irineu.

Durante a festa, ninguém viu Inglaterra e Suécia ou Rússia e Croácia. Estavam concentrados no torneio entre os times indígenas, disputado no campinho da aldeia. O esporte bretão virou uma paixão para os nativos brasileiros. Cinco equipes foram formadas e se revezaram em confrontos diretos, um na sequência do outro.
Messi e Neymar estavam em campo, pelo menos com os nomes gravados nas camisetas improvisadas para identificar os times – o que incluiu também um Kaká, da época do Inter de Milão, como goleiro (!) Nos pés, tinha para todos os estilos: vários descalços, alguns de All Star e outros ostentando chuteiras coloridas e invocadas. Foram várias as comemorações de gol ao estilo Cristiano Ronaldo.
Jogadas de bola alta não estavam entre as estratégias dos times, de estatura mediana, inferior a 1,70m. Em campo, nada de reclamações sobre as condições do gramado ou pela ausência de juiz – muito menos de VAR. Volta e meia a bola ia parar no mato, interrompendo a partida até que um voluntário se embrenhasse em busca da pelota. Numa das vezes a bola desapareceu e foi preciso que cinco jogadores se empenhassem para encontrá-la.
Com habilidade nos dribles e sempre se antecipando às jogadas, Augustinho apareceu com o craque do torneio. Vindo da Ilha da Cotinga, de cabelos descoloridos amarrados sobre a base raspada, tatuagem do Corinthians, marcou oito gols em menos partidas do que as disputadas pelos artilheiros da Copa, Harry Kane e Lukaku. Só não fez mais porque, extenuado, começou a ter câimbras e deixou o campo.
A torcida estava animada, ajeitada em cadeiras de plástico rodeando o campo. Ora falando em português, ora em guarani – e as vezes misturando tudo. Enquanto comentavam as partidas, pitavam petanguás, cachimbos típicos abastecidos com fumo de corda, comprado no supermercado. Na terra que é pura areia, quase nada nasce. Antenados com o que estava acontecendo na Rússia, chamavam de Neymar qualquer um que caía em campo e não perdoaram o gol contra marcado por Florêncio Rekag, índio doutorando em Antropologia, comparado a Fernandinho.
As mulheres cogitaram uma disputa feminina: trouxeram roupa, mas desistiram e prefiram apenas assistir. Enquanto rolavam as partidas oficiais, as crianças também brincavam de bola, em meio a galinhas soltas. O pôr do sol decretou o fim do futebol e o começo dos preparativos para o bailão. As mulheres tinham direito a chuveiro. Para os homens, banho de rio. Depois, mais uma rodada de frango e costela assados no fogo de chão.
Para animar, uma banda de forró, formada por índios. “Hoje ninguém vai dormir. Tem festa a noite toda”, comenta Florinda, esposa do cacique. Além de colchões espalhados por todos os cômodos das casas, algumas barracas foram montadas. A pequena aldeia, formada apenas pela família Rodrigues, viveu um final de semana de celebração.

Origem

A Karaguata Poty fica às margens do rio Guaraguaçu e é também conhecida como Sambaqui, por abrigar um amontoado de conchas feito pelos ocupantes primitivos do Litoral – patrimônio de valor histórico e, para os índios, espiritual. A aldeia surgiu há 18 anos, quando Irineu saiu da Ilha da Cotinga, em Paranaguá, em busca de um lugar para instalar a família. Uma das marcas do povo guarani é a mobilidade. São caminhantes.
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