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Estômago em chamas

Amanda Milléo
17/04/2014 03:18
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A sensação de azia e "queimação" na boca do estômago, sintomas conhecidos da doença do refluxo gastroesofágico, não significa necessáriamente uma ida à endoscopia. Sozinho, o procedimento não diagnostica a doença que, em cerca de 40% dos casos, passa despercebida pelo endoscópio, ou pode resultar em falsos positivos, tornando o exame ineficaz.
Mesmo sabendo disso, gastroenterologistas brasileiros por vezes cedem aos apelos de pacientes, sejam eles de hospitais públicos, conveniados ou particulares. Como é invasiva, a endoscopia também traz riscos tanto na sedação quanto durante o procedimento, podendo causar hemorragias, perfurações e infecções. "Muitas pessoas têm o costume de solicitar o exame somente porque têm o direito a fazê-lo, ou ainda porque acham ‘bonito’ ter a endoscopia na pasta de exames", afirma o médico endoscopista e professor de Gastroenterologia Clínica da Univer­­sidade Federal de São Paulo, Stephan Geocze.
Os custos e possíveis riscos do procedimento levaram a American College of Physicians, sediada nos Estados Unidos, a desenvolver as diretrizes clínicas para o uso da endoscopia alta (que verifica esôfago, estômago e duodeno – primeira parte do intestino delgado) no caso da doença do refluxo gastro­­esofágico, no fim do ano passado. As orientações limitam o uso do procedimento, não bastando ao paciente apresentar a conhecida ‘queimação’, mas ter também outros sintomas, como sangramento, anemia e vômito recorrente. Ema­grecimento, falta de apetite, dificuldades ao engolir e mudança no padrão da dor também podem levar ao exame. "No Brasil, um indivíduo que há 20 anos tem azia, mas de repente sente o mal-estar mesmo tomando um copo de água, acaba tendo de passar pela endoscopia para descartar outros distúrbios", diz Carlos Naufel, cirurgião do aparelho digestivo do Hospital Evangélico.
Outros distúrbios
Gastrites, úlceras e esofagites deixam sinais claros no revestimento do estômago e esôfago verificados pela endoscopia. Segundo o diretor da Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva (Sobed), Gustavo Andrade de Paulo, são os casos em que o procedimento é mais indicado. "A endoscopia não faz diagnóstico do refluxo, mas da esofagite. Se tiver esofagite, pode ter o refluxo. Mas, às vezes, tem o refluxo e não tem a inflamação no esôfago", explica.
Remédio demais causa efeito rebote
Recorrer corriqueiramente ao omeprazol – o tipo de bomba de próton mais comum e livre de receita médica–, de maneira contínua, indiscriminada e sem orientação contra azia, refluxo e queimação pode causar graves problemas ou esconder a doença original.
Quando há úlcera, gastrite ou refluxo gástrico, a principal indicação dos gastroenterologistas é a prescrição desse tipo de remédio. Porém, os especialistas têm percebido que muitos pacientes chegam aos consultórios após o uso rotineiro do medicamento, às vezes de forma equivocada. "Sem orientação médica, ele pode mascarar uma disflexia funcional, como o mau funcionamento do estômago, gastrite e úlceras", diz o gastroenterologista Olival Ronald Leitão, professor da Universidade Federal do Paraná.
O uso corrente do medicamento influencia não apenas os órgãos do sistema digestório. "Há estudos que mostram pacientes que adquiriram certa dificuldade de absorção de cálcio, promovendo a descalcificação, piorando a osteoporose, principalmente em mulheres", diz Júlio Pisani, especialista em endoscopia digestiva pela Sociedade Brasileira de Endoscopia Digestiva e também professor da UFPR.
Quem utiliza o inibidor da bomba de prótons por um período longo (de seis meses a um ano) tem maior risco de sofrer o efeito rebote do medicamento, segundo o membro da Federação Brasileira de Gastro­­en­­terologia, Odery Ramos Junior. O inibidor bloqueia a produção de ácido, a partir das glândulas produtoras, causando alívio. Quando o medicamento é interrompido, o ácido retorna de forma mais intensa, formando uma hipersecreção causada pela hipertrofia das glândulas que produzem o ácido. "Isso pode desencadear pequenos pólipos de natureza glandular no estômago, identificados pela endoscopia e associados ao uso crônico do inibidor", explica Ramos. O efeito rebote causa ainda um círculo vicioso ao paciente, que, ao deixar de tomá-lo, vê ampliarem-se os sintomas, acabando por voltar instintivamente a utilizá-lo, sem tratar o problema original.
Baixa toxicidade
O omeprazol não possui alto grau de toxicidade, desde que administrado com cautela. "É tolerável que pessoas com sintomas leves usem o medicamento, desde que por pouco tempo. Se a dor persistir por mais de 30 dias, deve consultar um médico", complementa o gastroenterologista Olival Leitão. Nos pacientes diagnosticados com úlceras, o tratamento com o inibidor leva de seis a oito meses, e pode passar de um ano em alguns casos. "Mas é raro, pois nesses casos também fazemos a erradicação da bactéria H. pylori, causadora do problema", afirma Leitão.
Quem toma por muito tempo
Em casos específicos, o inibidor da bomba de prótons é recomendado para um período longo, chegando a um ano. "Pacientes com gastrite e úlceras tomam o inibidor para melhorar os sintomas, enquanto a bactéria causadora do desequilíbrio entre o ácido e a proteção do estômago é combatida por antibióticos. O inibidor só é utilizado enquanto for prescrito o antibiótico", explica Odery Ramos Junior. Pacientes que utilizam anti-inflamatórios tendem a ter a proteção do estômago reduzida, por este motivo recebem também a prescrição do inibidor para o período de uso.
Diferenças importantes
Doença do refluxo gástrico
É a passagem do conteúdo gástrico para o esôfago. Como o conteúdo é ácido, forma uma inflamação no esôfago, conhecida por esofagite. Entre os principais sintomas, a pessoa sente uma queimação na região. O tratamento se dá por orientações nos hábitos de vida, controle do peso, redução no volume das refeições, bem como o aumento da frequência das mesmas, e redução do cigarro, álcool e cafeína. Segundo gastroentero­logistas, geralmente o tratamento clínico traz resultados positivos. Caso contrário, prescreve-se o inibidor.
Cirurgia
Pacientes com inflamações mais graves e com alteração anatômica, como a hérnia de hiato, são indicados para cirurgias. No entanto, são situações isoladas.
Gastrite
Trata-se de uma inflamação do revestimento do estômago, decorrente ou da presença da bactéria H. pylori ou do uso frequente de anti-inflamatórios analgésicos que alteram a barreira protetora do estômago. A bactéria é considerada pelos especialistas a principal causa do distúrbio e primeiro fator a ser combatido, medida conjunta à prescrição do inibidor da bomba de prótons.
Úlcera
Trata-se de uma inflamação mais profunda do revestimento do estômago, decorrente das mesmas causas da gastrite. O tratamento é feito por antibióticos e inibidores para garantir a redução do ácido no período de cicatrização da inflamação.
Fonte: Odery Ramos Junior, membro da Federação Brasileira de Gastroenterologia.