especial

Médicos de família

Amanda Milléo
26/10/2014 02:04
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Poucos são os momentos em que o telefone na mesa do consultório fica silencioso e, quando isso acontece, é o celular do clínico geral e cardiologista Valmor Oscar Schulz, 72 anos, que dá o alerta: algum paciente amigo quer tirar dúvidas, pedir conselhos, atualizá-lo sobre o estado de saúde dos parentes ou apenas convidá-lo para uma comemoração. Ser "adotado" pelas famílias para tratar de todas as gerações se tornou cada vez mais raro, mas ainda existem médicos que não abrem mão do cuidado especializado, assim como os pacientes que preferem ter o "seu" doutor.
Faz mais de 10 anos que não há outro médico para a família Accioly que Schulz. Foi ele quem atendeu o patriarca, o desembargador Paulo Roberto Accioly Rodrigues da Costa, durante as sessões de diálise; quem aconselha a matriarca Ivete Kaled Accioly Rodrigues da Costa, 74 anos, nas questões de saúde desde o falecimento do marido, e quem continua a atender a atendê-la, além da filha e dos netos. "Ele não mede distâncias para nos ver. É muito difícil encontrar quem hoje venha até em casa. Passamos aniversários e mesmo comemorações de fim de ano juntos", conta Ivete, que pede conselhos ao médico sobre internações e cirurgias de parentes, ou mesmo situações cotidianas, como receitas na cozinha.
Além dos Accioly, o clínico geral tem coleções de famílias curitibanas nas fichas de pacientes. "O meu paciente mais antigo tem hoje 102 anos! Tenho uma com 94 anos que, quando começamos a consultar, ela tinha 62 e eu dizia: ‘A senhora vai viver até os 95!’, e ela respondia: ‘Não quero!’. Agora, ela brinca que ainda é muito nova", conta o médico, que soma 44 anos de profissão. "O que mais percebo é esse calor de família mesmo, como se fôssemos filhos, irmãos, tios e pais dos pacientes. As mulheres, principalmente as mais idosas, sentem-se todas como minhas namoradas. Elas brincam para que eu não as traia com as outras", ri o médico.
Café e sabatina
Convites para cafés da manhã, lanches da tarde ou refeições completas nas casas dos pacientes fazem parte da rotina do clínico geral e professor de Clínica Médica do curso de Medicina da Universidade Positivo, Cesar Alfredo Pusch Kubiak, 63 anos. Apesar dos mimos culinários, os encontros acabam sendo consultas comunitárias. "É o momento em que a vizinha aparece para fazer a aferição da pressão arterial, o outro parente vem pedir a receita do remédio controlado, os netos chegam para tirar dúvidas e você acaba participando de um evento familiar muito interessante, porque não fica só na consulta", conta o profissional.
Em cada residência, uma dinâmica diferente. Kubiak conta que há aquelas que sempre pedem um relatório da saúde do patriarca ou da matriarca, enquanto outros promovem uma espécie de "sabatina" com o médico sobre mil assuntos diferentes. "Ajudei em tomadas de decisões importantes, como mudança de emprego, dramas familiares, separações. Tudo isso a gente acaba tratando no que eu chamo de ‘psicoterapia menor de consultório’. É o aconselhamento, a palavra de incentivo que às vezes a pessoa precisa e encontra em você esse conselheiro", conta o médico, com 40 anos de profissão.
Segunda mãe
Verena Araújo tem hoje 33 anos, mas aos 10 ganhou uma segunda mãe, a médica homeopata e clínica geral Nobuko Mogami Tanaka, 59 anos. As crises de bronquite recorrentes tiravam o sono dos pais, Gilberto Mendes de Araújo e Bernadete Araújo, ambos de 60 anos, que não sabiam mais o que fazer pela filha. "Foi como se ela tivesse me pego no colo! A doutora Nobuko me perguntou tudo, até como tinha sido a minha gestação da Verena", conta Bernadete. O carinho e a atenção nas consultas fizeram com que outros membros da família virassem pacientes, começando pela própria mãe, depois o pai, o irmão, Jonas Araújo (31), a cunhada, Adriana Martins (31), o marido, James Belloni (36) e até mesmo o filho de um ano, Pedro Araújo Belloni. "Durante a gravidez do Pedro, fui mais ao consultório dela do que no próprio ginecologista. Como não podia tomar qualquer remédio, ela me indicava e conversávamos sobre as melhores opções", diz Verena.
"Quando o paciente me liga, eu sei quem é, sei o que ele passou anteriormente e o que pode estar sentindo e isso é muito importante", explica a médica, que completa 32 anos de profissão e acumula inúmeras famílias. "Se você é o médico daquela família, você consegue acompanhá-la em tudo. A orientação passa a ser médica, psicológica e emocional", afirma Nobuko.
Logo na primeira consulta, o professor de história Antônio Carlos Coelho, 61 anos, se surpreendeu com o clínico e pneumologista Roberto Boscardin, 62 anos. Havia algum tempo que ele não tinha um contato tão próximo com um médico, com quem pudesse explicar o que sentia sem se preocupar com o tempo apertado ou a prescrição de um remédio ou exame. A tranquilidade fez com que ele "puxasse" outros membros da família para o consultório, como o pai e a filha, e trouxe o próprio médico para a casa da família. "Toda semana ele visitava meu pai no trabalho, para conversar, saber como estava. Estamos em falta de médicos assim", conta o professor.
Anjos do estetoscópio